quarta-feira, dezembro 29, 2004

PERGUNTA AOS SENHORES DO MUNDO
PIERRE BOURDIEU
17/OUTUBRO/1999 – BOURDIEU DESAFIA A MÍDIA INTERNACIONAL O sociólogo francês defende a exceção cultural e os valores da arte em palestra a empresários, em Paris. ( do "Libération" )
Eles foram recebidos por Jacques Chirac e Lionel Jospin, adulados pelos ministros, convidados para banquetes nos palácios da República. Cerca de 70 grandes empresários do setor audiovisual que estiveram em Paris, na última semana, a convite de Pierre Lescure (Canal Plus) não esquecerão a viagem.
Oficialmente tratava-se da reunião anual do Conselho Internacional do Museu da Televisão e do Rádio (sediado em Nova York), uma espécie de clube informal das grandes empresas de mídia. Entre os presentes, Peter Chernin (presidente da Fox), Conrad Black (Hollinger), Thomas Middelhoff (Bertelsmann), Greg Dyke (BBC), Fedele Confalonieri (Mediaset), Rémy Sautter (CLT-UFA), Tim Koogle (Yahoo) etc., mais alguns eminentes representantes dos fundos de investimentos americanos e do mundo político: Jacques Delors, Henry Kissinger, Viviane Reding (comissária européia para a cultura).
Oficiosamente, os senhores da imagem viram-se "vítimas" de uma espetacular operação de encantamento, com o objetivo de sensibilizá-los para a idéia muito francesa da "exceção cultural". É que o tempo urge. No próximo mês começa em Seattle uma nova rodada de negociações comerciais patrocinada pela Organização Mundial do Comércio (OMC). A França quer "absolutamente" que a comunicação audiovisual seja excluída do campo de debates: o espectro do Acordo Multilateral sobre Investimentos (AMI) ainda ronda.
"Reivindicamos apenas o direito de manter nossa produção", pediu na última terça-feira Lionel Jospin, "pois trata-se de um fator essencial para nós: a diversidade cultural. Nada seria mais perigoso que um universo em que globalização rimasse com uniformização".
Na segunda-feira, em Luxemburgo, os Quinze não chegaram a acordo sobre uma plataforma comum para ir a Seattle unidos. E a questão do audiovisual revelou-se um dos principais pontos de atrito. Um peixe-grande de vários fundos de investimentos americanos afirmou na terça-feira para o "Libération": "A exceção cultural é um combate de retaguarda. Por que vocês não deixam que o telespectador escolha o que quer ver?". Em contrapartida, a intervenção do sociólogo Pierre Bourdieu, 69, que abriu os debates (a portas fechadas), teria provocado "grande curiosidade", segundo testemunhas. Leia abaixo a íntegra das "observações" que o professor do Collège de France fez à prestigiosa platéia.
Não me darei ao ridículo de descrever a situação do mundo da mídia para pessoas que o conhecem melhor que eu; pessoas que estão entre as mais poderosas do mundo, de um poder que não é apenas do dinheiro, mas do que o dinheiro pode ter sobre os espíritos. Esse poder simbólico, que na maioria das sociedades era diferente do poder político ou econômico, hoje está concentrado nas mãos das mesmas pessoas, que detêm o controle dos grandes grupos de comunicação, ou seja, do conjunto dos instrumentos de produção e de difusão dos bens culturais.
A essas pessoas muito poderosas gostaria de submeter uma pergunta do gênero da que Sócrates submeteu aos poderosos de seu tempo (nesse diálogo, ele perguntou com muita paciência e insistência a um general célebre por sua coragem o que era coragem; em outro, perguntou a um homem conhecido por sua piedade o que era piedade; e assim por diante, fazendo parecer, a cada vez, que eles realmente não sabiam o que eram).
Não estando à altura de proceder dessa maneira, eu gostaria de fazer algumas perguntas que sem dúvida essas pessoas não se fazem (principalmente porque não têm tempo) e que conduzem todas a uma só: senhores do mundo, vocês têm domínio de seu domínio? Ou, mais simplesmente, sabem realmente o que fazem, o que estão fazendo, todas as consequências do que estão fazendo? Perguntas muito embaraçosas, às quais Platão respondeu com a famosa fórmula, que sem dúvida também se aplica a esse caso: "Ninguém é mau voluntariamente".
Dizem-nos que a convergência tecnológica e econômica do audiovisual, das telecomunicações e da informática, e a confusão de redes que dela resulta tornam inoperantes e inúteis as proteções jurídicas do audiovisual (por exemplo, as regras relativas às cotas de difusão de obras européias); dizem-nos que a profusão tecnológica, somada à multiplicação de canais temáticos digitalizados, responderá à demanda potencial dos consumidores mais diversos, que todas as demandas receberão ofertas adequadas, em suma, que todos os gostos serão satisfeitos.
Dizem-nos que a concorrência, sobretudo quando associada ao progresso tecnológico, é sinônimo de "criação" (eu poderia ilustrar cada uma de minhas asserções com dezenas de referências e citações, definitivamente muito redundantes). Mas também nos dizem que a concorrência dos novos agentes, muito mais poderosos, vindos das telecomunicações e da informática, é tamanha que o audiovisual tem cada vez mais dificuldade para resistir; que os valores dos direitos, principalmente em relação ao esporte, são cada vez mais elevados; que tudo o que produzem e divulgam os novos grupos de comunicação integrados tecnológica e economicamente, isto é, tanto mensagens televisivas quanto livros, filmes ou jogos televisivos, em suma, tudo o que se agrupa sob o nome de "catch all" de informação, deve ser tratado como uma mercadoria igual às outras, a que se devem aplicar as mesmas regras que a qualquer outro produto; e que esse produto industrial padronizado deve assim obedecer à lei comum, a lei do lucro, imune a qualquer exceção cultural sancionada pelas limitações regulamentares (como o preço único do livro ou as cotas de difusão).
Dizem-nos enfim que a lei do lucro, isto é, a lei do mercado, é eminentemente democrática, já que sanciona o triunfo do produto que é plebiscitado pelo maior número de pessoas. A cada uma dessas "idéias" poderíamos opor não idéias, sob o risco de parecermos um ideólogo perdido na névoa, mas fatos: à idéia de diferenciação e de diversificação extraordinária da oferta, poderíamos observar a extraordinária uniformização dos programas de televisão, o fato de que as inúmeras redes de comunicação tendem cada vez mais a difundir o mesmo tipo de produtos, jogos, seriados, música comercial, romances sentimentais do tipo telenovelas, séries policiais que nada ganham, ao contrário, em serem francesas ou alemãs, todos eles produtos originários da busca de lucros máximos por custos mínimos ou, em campo diferente, a crescente homogeneização dos jornais e dos semanários.
Em outro exemplo, às "idéias" de concorrência e diversificação, poderíamos opor o fato da extraordinária concentração dos grupos de comunicação, concentração que, como demonstra a mais recente fusão entre a Viacom e a CBS, ou seja, de um grupo voltado para a produção de conteúdo com um grupo voltado para a difusão, conduz a uma integração vertical tal que a difusão comanda a produção. Mas o essencial é que as preocupações comerciais, e em particular a busca do lucro máximo em curto prazo, se impõem cada vez mais, e cada vez mais amplamente, ao conjunto das produções culturais. Assim, no domínio da edição de livros, que estudei de perto, as estratégias dos editores, e em especial dos diretores de grandes grupos, se orientam para o sucesso comercial.É aí que seria necessário começar a fazer perguntas.
Falei há pouco de produções culturais. Ainda é possível hoje, e será ainda possível por muito tempo, falar de produções culturais e de cultura? Os que fazem o novo mundo da comunicação e são feitos por ele gostam de citar o problema da velocidade, do fluxo de informações e de transações que se torna cada vez mais rápido e, sem dúvida, eles têm parcialmente razão, quando pensam na circulação da informação e na rotatividade dos produtos. Dito isso, a lógica da velocidade e do lucro que se unem na busca do lucro máximo a curto prazo (com as pesquisas de audiência para a televisão, o sucesso de vendas para o livro e, evidentemente, o jornal, o número de anos para o filme) parecem-me incompatíveis com a idéia de cultura.
Como disse Gombrich, quando as "condições ecológicas da arte" são destruídas, a arte e a cultura não demoram a morrer.Como prova, eu poderia me contentar em citar o que ocorreu ao cinema italiano, que foi um dos melhores do mundo e que só sobrevive graças a um punhado de cineastas, ou do cinema alemão, ou do cinema da Europa do Leste. Ou a crise que sofre em toda parte o cinema de autor, principalmente por falta de circuitos de difusão. Sem falar na censura que os distribuidores de filmes podem impor a certos filmes. Ou ainda o destino de uma rede de rádio cultural, hoje entregue à liquidação em nome da modernidade, das pesquisas de audiência e das conivências da mídia.
Mas só podemos compreender realmente o que significa a redução da cultura ao estado de produto comercial se nos lembrarmos como foram constituídos os universos da produção e das obras que consideramos universais no campo das artes plásticas, da literatura ou do cinema. Todas as obras expostas nos museus, todos os trabalhos de literatura que se tornaram clássicos, todos os filmes conservados nas cinematecas são produtos de universos sociais que se constituíram aos poucos, superando as leis do mundo comum e particularmente a lógica do lucro.
Para me fazer entender, um exemplo: o pintor do Quatrocento- sabemos pela leitura dos contratos- teve de lutar contra os clientes para que sua obra deixasse de ser tratada como um simples produto, avaliada pela superfície pintada e pelo preço das tintas empregadas; teve de lutar para obter o direito à assinatura, ou seja, o direito a ser tratado como autor, e também pelo que chamamos, desde uma data bastante recente, de direitos autorais (Beethoven ainda lutou por esse direito); teve de lutar pela raridade, a originalidade, a qualidade, teve de lutar, com a colaboração de críticos, de biógrafos, de professores de história da arte etc., para se impor como artista, como "criador".
Ora, é tudo isso que se encontra ameaçado hoje com a redução da obra a um produto e a uma mercadoria. As lutas atuais dos cineastas pelo "final cut" e contra a pretensão do produtor de deter o direito final sobre a obra são o equivalente exato às lutas do pintor do Quatrocento. Foram precisos cerca de cinco séculos para que os pintores conquistassem o direito de escolher as tintas empregadas, a maneira de utilizá-las e, finalmente, o direito de escolher o tema, sobretudo ao fazê-lo desaparecer, com a arte abstrata, para grande escândalo do cliente burguês.
Da mesma forma, para ter um cinema de autor foi preciso todo um universo social, pequenas salas e cinematecas que projetam filmes clássicos e são frequentadas por estudantes, cineclubes animados por professores de filosofia, cinéfilos formados pela frequência a essas salas, críticos abalizados que escrevem nos "Cahiers du Cinéma", cineastas que aprenderam a profissão assistindo a filmes sobre os quais se informavam nesses "Cahiers", em suma, todo um ambiente social no qual certo cinema tem valor, é reconhecido.
São esses universos sociais que hoje estão ameaçados pela irrupção do cinema comercial e a dominação dos grandes distribuidores e, com eles, os produtores, salvo quando eles mesmos se encontram num processo de involução; eles são palco de um retrocesso, da obra para o produto, do autor para o engenheiro ou o técnico que utiliza recursos técnicos, os efeitos especiais, e de estrelas, todos extremamente dispendiosos, para manipular ou satisfazer as pulsões básicas do espectador (com frequência previstas pelas pesquisas de outros técnicos, os especialistas em marketing).
Reintroduzir o reino do "comercial" em universos que foram construídos, aos poucos, contra ele, é pôr em risco as obras mais elevadas da humanidade, a arte, a literatura e mesmo a ciência. Não acredito que alguém o possa realmente desejar. Foi por isso que citei no início a célebre fórmula platônica: "Ninguém é mau voluntariamente". Se é verdade que as forças da tecnologia aliadas às forças da economia, a lei do lucro e da concorrência, ameaçam a cultura, que podemos fazer para rechaçar esse movimento? Que podemos fazer para aumentar as probabilidades dos que só podem existir num tempo longo, os que, como outrora os pintores impressionistas, trabalham para um mercado póstumo?
Eu gostaria de convencer, mas sem dúvida precisaria de muito tempo, de que buscar o lucro máximo imediato não é necessariamente, quando se trata de livros, de filmes ou de pintores, obedecer à lógica do interesse verificado: identificar a busca do lucro máximo com a busca do público máximo é arriscar-se a perder o público atual sem conquistar outro, a perder o público relativamente restrito das pessoas que lêem muito, frequentam muito os museus, teatros e cinemas, ganhando em troca novos leitores ou espectadores ocasionais.
Se sabemos que, pelo menos em todos os países desenvolvidos, o período de escolarização não pára de crescer, assim como o nível de instrução médio, como também crescem todas as práticas estreitamente relacionadas ao nível de instrução (frequência a museus ou teatros etc.), podemos pensar que uma política de investimento econômico nos produtores e produtos ditos "de qualidade" pode, pelo menos em médio prazo, ser rentável, mesmo economicamente (de qualquer forma, sob a condição de contar com os serviços de um sistema educacional eficaz).
Assim, a opção não é entre a "globalização", isto é, a submissão às leis do comércio, portanto ao reino do "comercial", que é sempre o oposto do que se entende de modo mais ou menos universal por cultura, e a defesa das culturas nacionais ou essa ou aquela forma de nacionalismo ou localismo cultural. Os produtos kitsch da "globalização" comercial, a dos jeans, da Coca-Cola ou do seriado, ou a do filme comercial de grande orçamento e efeitos especiais, ou ainda a da "world fiction", cujos autores podem ser italianos ou ingleses, se opõem em todos os aspectos aos produtos da internacional literária, artística e cinematográfica, cujo centro está em toda parte e em lugar nenhum, embora tenha sido por muito tempo e talvez ainda seja Paris, lugar de uma tradição nacional de internacionalismo artístico, ao mesmo tempo que Londres e Nova York.
Assim como Joyce, Faulkner, Kafka, Beckett ou Gombrowicz, puros produtos da Irlanda, dos Estados Unidos, da Tcheco-Eslováquia ou da Polônia, foram feitos em Paris, também numerosos cineastas contemporâneos não existiriam como existem sem essa internacional literária, artística e cinematográfica cuja sede social é Paris. São necessários vários séculos para produzir produtores que produzem para mercados póstumos. É colocar mal os problemas simplesmente opondo, como se faz com frequência, uma "globalização" e um mundialismo que estariam do lado da potência econômica e comercial, e também do progresso e da modernidade, a um nacionalismo ligado a formas arcaicas de manutenção da soberania. Trata-se na verdade da luta entre uma potência comercial que pretende estender ao universo os interesses particulares do comércio e dos que o dominam e uma resistência cultural, fundada na defesa das obras universais produzidas pela internacional desnacionalizada dos criadores.
Vou encerrar com uma anedota histórica, que também se relaciona à velocidade, e que mostra quais deveriam ser, na minha opinião, as relações que uma arte livre das pressões do comércio poderia ter com os poderes temporais. Conta-se que Michelangelo aplicava tão pouco a forma protocolar em suas relações com o papa Júlio 2º, seu cliente, que este era obrigado a sentar-se rapidamente para que Michelangelo não se sentasse antes. Em certo sentido, poder-se-ia dizer que tentei perpetuar aqui, muito modestamente, mas muito fielmente, a tradição inaugurada por Michelangelo, de distância em relação aos poderes e, muito especialmente, desses novos poderes que são as potências conjugadas do dinheiro e da mídia.

Pierre Bourdieu é sociólogo, professor do Collège de France, autor de "Sobre a Televisão", "Contrafogos" (Jorge Zahar Editor) e "A Dominação Masculina" (Bertrand Brasil), entre outros.Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

sábado, dezembro 13, 2003

A gula terapêutica


RECÉM-PUBLICADO NO REINO UNIDO, "CULTURA DA TERAPIA" ATACA O "EMOCIONALISMO" E A "VITIMIZAÇÃO" QUE ESTARIAM CONTAMINANDO TODOS OS SETORES DA SOCIEDADE, COMO A RELIGIÃO, O ENSINO E A TV

por Jurandir Freire Costa

Frank Furedi é professor de sociologia na Universidade de Kent, no Reino Unido. Em seu mais recente livro, "Therapy Culture - Cultivating Vulnerability in an Uncertain Age" [Cultura da Terapia - Cultivando a Vulnerabilidade em uma Era de Incerteza, ed. Routledge, 256 págs., 14,99 libras], ele retoma as preocupações dos trabalhos anteriores, "Paranoid Parenting" [ed. Allen Lane] e "Culture of Fear" [ed. Continuum]. Nos três livros se trata de analisar o impacto das crenças culturais na formação da subjetividade. Em "Cultura da Terapia", no entanto, o foco é posto nos ataques à liberdade individual pela invasão da esfera pública por questões da esfera privada. O exemplo escolhido para ilustrar a tese é o fenômeno social do "emocionalismo". Furedi (1947) observa que os meios de comunicação de massa e a literatura especializada vêm apresentando a tendência crescente para descrever condutas da vida cotidiana no vocabulário médico-psicológico. Palavras e expressões como "stress", "auto-estima", "trauma", "transtornos de déficit de atenção e hiperatividade", "dependências compulsivas ("addictions')", "emoções negativas", "crises de meia-idade", "síndrome de pânico", "fobia social", "ansiedade livremente flutuante" etc. vêm sendo aplicadas com uma pressa e uma avidez impensáveis, desde 20 anos. Nem mesmo os chefões da Máfia, ironiza ele, escaparam da gula terapêutica. Tony soprano, o gângster televisivo favorito das famílias americanas, foi parar no divã.

Desvalorização da política
Quais as razões dessa explosão de epítetos psicológicos colados a comportamentos sociais corriqueiros? Furedi descarta, de imediato, os clichês explicativos correntes: o declínio da tradição e o capitalismo neoliberal. Os dois fatores, efetivamente, criaram obstáculos inéditos à constituição de identidades pessoais satisfatórias. No entanto nem a contestação da tradição religiosa e familiar nem o capitalismo, na feição "consumo de massa", são fatos recentes, por conseguinte não podem ser vistos como causas suficientes ou necessárias para o surgimento da cultura da terapia. A seu ver, o que melhor esclarece a natureza da medicalização psicologizante dos comportamentos sociais é a perda de sentido moral da esfera pública. A desvalorização da política ou dos simples compromissos comunais criou uma zona de irrelevância ética no modo de vida ocidental que foi progressivamente tomada por dois eventos, o emocionalismo e a vitimização. O emocionalismo é a prática cultural que incentiva a expressão de afetos privados em público. Os indivíduos, na ausência de paixões ideológicas, encontraram nas confissões emocionais a céu aberto um sucedâneo tosco e precário dos clássicos vínculos de cidadania. O espaço público foi, assim, parasitado pelas idiossincrasias emocionais das celebridades ou "pessoas comuns", e, os sujeitos, levados a se reconhecerem mutuamente, não como cidadãos, mas como membros da confraria dos heróis do coração.

"Alfabetização emocional"
Para os mentores intelectuais do movimento, o teatro da confissão é necessário à "alfabetização emocional", sem a qual não podemos suportar a coerção das demandas sociais. Acontece, diz Furedi, que a alfabetização significa, na prática, aceitar falar em público sobre as fragilidades psicológicas, em especial, sobre as "dependências" compulsivas. Ou seja, o ritual da conversão emocionalista visa a mostrar como se passa de cidadão a "cliente" com o devido concurso dos especialistas em emoções.
A naturalização da prática migrou para outros campos da vida social e deu origem a um novo padrão de ação coletiva, a "vitimização" auto-reivindicada. Confessar é, automaticamente, ser absolvido a título de vítima da sociedade. Mas, diz o autor, se perguntarmos "qual sociedade?", a resposta é uma só: a família! Donde o refrão emocionalista: família boa, família má, família tratada, família doente. E, posto que todos têm família ou são candidatos a tê-la, todos são vítimas potenciais de traumas conhecidos ou ignorados.
Desse modo, a cidade política foi sitiada pela legião dos suplicantes, em busca de "compensação" por injúrias sofridas. Em vez de se unirem em torno do que podem, os indivíduos se ligam pelo que não podem. Todos acusam todos, e em um só ponto parece haver acordo: na demonização moral da família.
Ora, diz Furedi, uma das piores sequelas do emocionalismo é justamente esse rebaixamento da dignidade individual. Hoje, o cidadão ou é consumidor ou vítima de alguma opressão. A ideologia emocionalista, de um só golpe, espremeu a sociedade em um sala-e-dois quartos, fez da cena pública um espetáculo para alcoviteiros e, da vida privada, um laboratório improvisado de obviedades do senso comum, enunciadas como descobertas científicas.
Para ele, essa intromissão na vida íntima é intolerável. O emocionalismo não apenas inibe a espontaneidade psicológica como torna qualquer padrão habitual de condutas um passaporte para a terra mal-assombrada das "compulsões" e "dependências". Se levarmos a sério o que dizem os especialistas, ninguém, por princípio, é suficientemente sadio para sair de casa, trabalhar, amar ou se divertir, até admitir as próprias falhas ou lacunas emocionais adquiridas no convívio com a "sociedade". Isto é, a vida cultural, depois de achatada e comprimida no exíguo décor familiar, é redesenhada como um pátio de hospício, um consultório ou uma sala de reunião para grupos de auto-ajuda.
O trabalho de Furedi se inscreve na linha da defesa da autonomia individual, típica da crítica liberal anglo-saxônica. "Cultura da Terapia" prolonga, de um lado, os pioneiros estudos sobre o tema de Philip Rieff, Richard Sennett e Christopher Lasch e, de outro, o que Foucault afirmou sobre a cultura da confissão moderna e o que Zygmunt Bauman, Ulrich Beck, Thomas Luckmann e Colin Campbell disseram sobre a "destradicionalização" da sociedade contemporânea.


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PROPOR O RETORNO À INTIMIDADE SENTIMENTAL COMO FORMA DE RESTABELECER A GRANDEZA DO POLÍTICO É REENCONTRAR O EMOCIONALISMO EM SEU NASCIMENTO
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Entretanto, não obstante as notáveis qualidades, o livro passa ao largo de alguns problemas que merecem ser mais bem elaborados. O primeiro concerne à relação entre a moralidade social e o princípio das éticas compassivas. Entre o frenesi da vitimização e a justiça reclamada pelos oprimidos, a fronteira pode ser tênue, mas existe. Edificar a esfera pública sobre pleitos e direitos de vítimas de traumas ou exclusões é, certamente, uma maneira tortuosa de restaurar a dignidade da política. Rechaçar, porém, "in toto" e in limine, o valor simbólico da identificação com a dor física ou moral do outro pode resultar em um passadismo idealizado, insensível à realidade concreta dos indivíduos.

Conivente ou indiferente
Furedi mantém uma distância parcial em relação à história. Em certas passagens, tende a magnificar a pretensa grandeza política de uma era que, se não causou, foi conivente ou indiferente para com a exploração econômica e moral de milhões de seres humanos, submetidos à discriminação racial, étnica, sexual, religiosa ou de classe social; em outras, parece minimizar os ganhos em liberdade obtidos no combate aos preconceitos, inclusive com o auxílio dos saberes médico-psicológicos por ele investigados.
A história, contudo, nunca diz estou de volta! Agir politicamente, nos dias de hoje, não é querer repetir heróis gregos ou "pais fundadores" e ainda menos desconsiderar as verdadeiras devastações morais produzidas pela intolerância da civilização burguesa oitocentista e novecentista. As éticas compassivas podem, de fato, descambar para o conformismo aviltante e despolitizador, mas, sempre que as descartamos, caímos no terror e na monstruosidade.
O segundo problema aponta para os limites internos à crítica liberal da cultura. Segundo Arendt, um dos mais tenazes equívocos do pensamento político-filosófico liberal consiste em empregar o termo liberdade como sinônimo de soberania. Liberdade, diz ela, não é um predicado da existência humana solitária, um estado mental autárquico que se possa gozar dando as costas ao mundo. Ser livre é a maneira que o indivíduo tem de se distinguir e exprimir sua distinção diante da sociedade dos iguais. Sem a visão plural dos outros, o recuo para o reino da intimidade pode redundar em quimeras, delírios, grandes idéias ou idéias insignificantes, mas nada disso importa ao exercício da liberdade.
Furedi, como grande parte dos críticos liberais, caminha em outra direção. Em sua opinião, basta devolver o indivíduo à teia das "relações informais íntimas" para liberá-lo da armadilha emocionalista. A privacidade sentimental e íntima, entretanto, é a irmã mais velha do emocionalismo. Ambos são filhos da tática individualista de evitar as incertezas e agruras do mundo de todos, buscando refúgio no mundo de cada um. Propor o retorno à intimidade sentimental como forma de restabelecer a grandeza do político, portanto, é reencontrar o emocionalismo em seu nascimento.
Privacidade não é, obrigatoriamente, culto ao intimismo. Podemos ter uma privacidade rica, sem os ingredientes sentimentais de outrora. O privado pode, sem dúvida, ser enquadrado no sentimentalismo, mas é, principalmente, a área da vida na qual avaliamos o que dizemos e fazemos, longe da imediatez da ação pública. Nesse tempo do encontro consigo, a história individual ganha profundidade e densidade, a fim de retomar o fôlego e voltar à órbita daquilo que é relevante para todos.
Furedi mostra, de forma convincente, como a exibição grotesca e despudorada da intimidade não indica coragem ou vontade de verdade, mas auto-indulgência e servilismo consentido. Ninguém se engrandece moralmente ao se apresentar em público como um manual de mazelas psicológicas, exploradas pela ganância de uns, pela idiotia cívica de outros ou pela estupidez política de muitos.
Revitalizar, porém, os costumes políticos não é se apegar a um sentimentalismo à beira da extinção. Desse aspecto, sobrou liberalismo e faltou freudismo. Um pouco mais de Freud talvez convencesse o autor de que poucos de nós desejariam reviver o que Peter Gay chamou de "guerras do prazer" e "cultivos do ódio", marcas registradas da idade áurea do intimismo cultural.
Por fim, em brevíssimas palavras, um livro para ser lido e relido. Um aceno para o horizonte da "hetero-ajuda" em meio à poluição tóxica de tanta "auto-ajuda".



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Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (ed. Rocco). Escreve esporadicamente na seção "Brasil 504 d.C.".

sábado, abril 05, 2003

Triunfo militar rápido será um álibi para o presidente Bush disciplinar com mais força os excessos emancipadores da própria sociedade norte-americana


IRAQUE PRÓ E CONTRA



por Slavoj Zizek


John Moore - 19.mar.2003/Associated
John Moore - 19 mar 2003/Associated
Soldados americanos rezam
durante tempestade de areia
na fronteira entre o Kwait e o Iraque





O único bom argumento para atacar o Iraque é que a maioria dos iraquianos realmente é vítima de Saddam Hussein e ficaria muito feliz por se livrar dele. Ele foi uma tal catástrofe para seu país que uma ocupação americana de qualquer forma pode parecer uma perspectiva muito mais positiva para eles em relação à sobrevivência diária e a um nível de medo muito menor. Não estamos falando aqui em "levar a democracia ocidental ao Iraque", mas apenas em livrar-se do pesadelo chamado Saddam.
Para essa maioria, a cautela manifestada pelos liberais ocidentais só pode parecer profundamente hipócrita -eles realmente se importam com o que a população iraquiana sente?
Podemos até propor um argumento mais geral: o que dizer dos esquerdistas ocidentais pró-Fidel que desprezam os que os próprios cubanos chamam de "gusanos" (vermes), aqueles que emigraram -mas, com toda a simpatia pela Revolução Cubana, que direito um típico esquerdista ocidental de classe média tem de desprezar um cubano que decidiu deixar Cuba não apenas por causa da desilusão política, mas também por causa da pobreza que chega à simples fome?
Lembro que no início da década de 1990 dezenas de esquerdistas ocidentais orgulhosamente atiraram em meu rosto que, para eles, a Iugoslávia ainda existia e me criticaram por trair a oportunidade única de manter a Iugoslávia -ao que sempre respondia que ainda não estava preparado para conduzir minha vida de modo a não desapontar os sonhos dos esquerdistas ocidentais...
Existem efetivamente poucas coisas mais dignas de desprezo, poucas atitudes mais ideológicas (se essa palavra tem algum significado hoje, deve ser aplicado aqui) que um catedrático acadêmico ocidental de esquerda que arrogantemente despreza (ou, pior ainda, "compreende" de forma condescendente) um europeu oriental de um país comunista que anseia pela democracia liberal ocidental e alguns bens de consumo...
No entanto é fácil demais passar desse fato à idéia de que "no fundo os iraquianos são como nós e realmente querem o mesmo que nós". A velha história se repetirá: os EUA levam às pessoas uma nova esperança e a democracia, mas, ao invés de saudar o Exército americano, a população ingrata o rejeita, suspeita de um presente dentro do presente, e então os EUA reagem como uma criança magoada pela ingratidão daqueles a quem ajudou altruisticamente.
A pressuposição subjacente é antiga: no fundo, se rasparmos a superfície, somos todos americanos, esse é o nosso verdadeiro desejo -então é preciso apenas dar uma oportunidade às pessoas, libertá-las das restrições impostas, que elas se unirão a nós em nosso sonho ideológico... Não admira que em fevereiro passado um deputado americano tenha usado o termo "revolução capitalista" para descrever o que os americanos estão fazendo hoje: exportando sua revolução para o mundo todo. Não admira terem passado da contenção do inimigo para uma posição mais agressiva.
Os EUA é que são hoje, como a finada União Soviética décadas atrás, o agente subversivo de uma revolução mundial. Quando Bush disse recentemente que "a liberdade não é um presente dos EUA para outros países, é um presente de Deus para a humanidade", essa aparente modéstia, na melhor maneira totalitária, oculta seu oposto: sim, mas não obstante são os EUA que se consideram o instrumento escolhido para distribuir esse presente a todas as nações do mundo! A idéia de "repetir o Japão em 1945", de levar a democracia ao Iraque, que então servirá de modelo para todo o mundo árabe, permitindo que as populações se livrem dos regimes corruptos, enfrenta imediatamente um obstáculo insuperável: e a Arábia Saudita, que por interesse vital dos Estados Unidos não deve se transformar em democracia? O resultado da democracia na Arábia Saudita seria a repetição do Irã em 1953 (um regime populista com um viés antiimperialista) ou da Argélia alguns anos atrás, quando os "fundamentalistas" ganharam as eleições livres. Onde, então, nos posicionamos com razões pró e contra? O pacifismo abstrato é intelectualmente estúpido e moralmente errado -devemos nos posicionar contra uma ameaça. É claro que a queda de Saddam seria um alívio para a grande maioria da população iraquiana. E é claro que o islã militante é uma ideologia terrivelmente antifeminista etc. É claro que existe algo de hipocrisia em todos os motivos contra: a revolta deveria vir do próprio povo iraquiano; não devemos impor nossos valores a eles; a guerra nunca é uma solução etc. Mas, embora tudo isso seja verdade, o ataque é errado -o que o torna errado é quem o pratica. A censura é: quem são vocês para fazer isso? Não é guerra ou paz, é o correto "sentimento visceral" de que há algo terrivelmente errado com esta guerra, de que alguma coisa mudará irremediavelmente com ela. Uma das afirmações ultrajantes de Lacan é a de que, mesmo que a declaração de um marido enciumado sobre sua mulher (que ela dorme com outros homens) seja totalmente verdadeira, ainda assim seu ciúme é patológico; na mesma linha, poderíamos dizer que, mesmo que a maioria das afirmações nazistas sobre os judeus fosse verdadeira (eles exploram os alemães, eles seduzem garotas alemãs...), seu anti-semitismo ainda assim seria (e foi) patológico -porque suprime a verdadeira razão por que os nazistas precisavam do anti-semitismo para sustentar sua posição ideológica. E o mesmo deveria ser dito hoje a propósito da afirmação americana de que "Saddam tem armas de destruição em massa!" -mesmo que ela seja verdadeira (e provavelmente é, pelo menos até certo ponto), ainda assim é falsa em relação à posição da qual é enunciada. Todo mundo teme o resultado catastrófico do ataque americano ao Iraque: uma catástrofe ecológica de proporções gigantescas, um grande número de baixas americanas, um ataque terrorista no Ocidente... Dessa maneira, já aceitamos o ponto de vista americano -e é fácil imaginar que, se a guerra terminar logo, numa espécie de repetição da Guerra do Golfo de 1991, se o regime de Saddam se desintegrar rapidamente, haverá um suspiro de alívio universal mesmo entre os atuais críticos da política americana. Somos tentados a considerar a hipótese de que os EUA estão propositalmente fomentando esse medo de uma catástrofe iminente, contando com o alívio universal quando a catástrofe não ocorrer. Esse, porém, é possivelmente o maior perigo real. Quer dizer, devemos ter coragem para proclamar o contrário: talvez um mau resultado militar para os EUA fosse a melhor coisa que poderia acontecer, uma má notícia que forçaria todos os participantes a repensar sua posição. Em 11 de setembro de 2001 as torres gêmeas foram atingidas; 12 anos antes, em 9 de novembro de 1989, o Muro de Berlim caiu. O 9/11 anunciou os "felizes anos 90", o sonho de Fukuyama do "fim da história", a crença de que a democracia liberal havia vencido em princípio, de que a busca havia terminado, de que o advento de uma comunidade global liberal aguardava depois da esquina, que os obstáculos a esse final feliz ultra-hollywoodiano eram apenas empíricos e contingentes, bolsões de resistência localizados, onde os líderes ainda não haviam percebido que seu tempo se esgotara. Em contraste, o 11/9 é o principal símbolo do fim dos felizes anos 90 clintonianos, da próxima era em que novos muros estão surgindo por toda parte, entre Israel e a Cisjordânia, ao redor da União Européia, na fronteira EUA-México. Paira a perspectiva de uma nova crise global: colapsos econômicos, catástrofes militares, estados de emergência...

Pobreza ética


E, quando os políticos começam a justificar diretamente suas decisões em termos éticos, podemos ter certeza de que a ética é mobilizada para encobrir esses horizontes sombrios e ameaçadores. É a própria inflação de retórica ética abstrata nas recentes declarações de Bush (do tipo "O mundo tem coragem de agir contra o Mal ou não?") que deixa clara a absoluta pobreza ética da posição americana -a função da referência ética aqui é puramente mistificadora, ela serve simplesmente para mascarar as verdadeiras opções políticas, que não são difíceis de discernir.
Em seu recente livro "The War Over Iraq" [ed. Encounter, EUA], William Kristol e Lawrence F. Kaplan escrevem: "A missão começa em Bagdá, mas não termina lá. (...) Estamos à beira de uma nova era histórica. (...) Este é um momento decisivo. (...) Claramente isso vai além do Iraque. Vai mesmo além do futuro do Oriente Médio e da guerra ao terrorismo. Tem a ver com o tipo de papel que os Estados Unidos pretendem exercer no século 21". Só podemos concordar com isso: é efetivamente o futuro da comunidade internacional que está em jogo hoje -as novas regras que a vão regular, qual será a nova ordem mundial...
O que está acontecendo agora é o passo lógico seguinte à rejeição dos EUA ao Tribunal de Haia [Tribunal Penal Internacional]. O primeiro tribunal mundial permanente de crimes de guerra começou a funcionar em 1º de julho de 2002, em Haia, com o poder de combater o genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra.
Qualquer pessoa, de um chefe de Estado a um cidadão comum, será passível de processo pelo TPI por violação sistemática de direitos humanos, incluindo assassinato, tortura, estupro e escravidão sexual; ou, como disse [o secretário-geral da ONU] Kofi Annan: "É preciso haver o reconhecimento de que somos todos membros da mesma família humana. Temos de criar novas instituições. Esta é uma delas. Este é mais um passo à frente na lenta marcha da humanidade para a civilização". No entanto, embora grupos de direitos humanos tenham saudado a criação do tribunal como a maior realização da Justiça internacional desde que os dirigentes nazistas foram julgados por um tribunal militar internacional em Nuremberg [que julgou entre 1945 e 1946 militares e políticos alemães derrotados na Segunda Guerra, por crimes contra a humanidade], o TPI ainda enfrenta firme oposição dos EUA, Rússia e China. Os EUA dizem que o tribunal infringiria sua soberania nacional e poderia levar a acusações de motivação política contra suas autoridades ou seus soldados trabalhando fora das fronteiras americanas, e o Congresso do país está até examinando uma legislação que autoriza as forças americanas a invadir Haia, onde o tribunal ficará sediado, caso os promotores acusem um cidadão americano.

Desvio retórico perverso


O paradoxo digno de nota aqui é que com isso os EUA rejeitaram a jurisdição de um tribunal que foi constituído com pleno apoio (e votos) dos próprios EUA! Por que então [o ex-ditador iugoslavo Slobodan] Milosevic, que hoje está em Haia, não teria o direito de afirmar que, já que os EUA negam a legalidade da jurisdição internacional do TPI, o mesmo argumento deve servir para ele? O mesmo vale para a Croácia: os EUA hoje exercem tremenda pressão sobre o governo croata para entregar ao tribunal de Haia alguns de seus generais acusados de crimes de guerra durante os conflitos na Bósnia -a reação, evidentemente, é: como podem pedir isso se eles mesmos não reconhecem a legitimidade do tribunal? Ou os cidadãos americanos são efetivamente "mais iguais que os outros"? Se simplesmente universalizarmos os princípios subjacentes à "doutrina Bush" [que estabelece as diretrizes da política externa e de segurança dos EUA], a Índia não teria o pleno direito de atacar o Paquistão? Este diretamente apóia e abriga o terror antiindiano na Caxemira e possui armas de destruição em massa (nucleares). Para não falar no direito da China de atacar Taiwan e assim por diante, com consequências imprevisíveis... Estamos conscientes de que nos encontramos no meio de uma "revolução silenciosa" na qual as regras não-escritas, que determinam a lógica internacional mais elementar, estão mudando? Os EUA censuram [o chanceler alemão] Gerhard Schroeder, um líder democraticamente eleito, por manter uma posição apoiada pela grande maioria da população alemã, além de, segundo pesquisas de meados de fevereiro, cerca de 59% da própria população americana (que se opõe ao ataque contra o Iraque sem a aprovação da ONU). Na Turquia, segundo pesquisas de opinião, 94% da população é contrária a permitir a presença de tropas americanas para a guerra contra o Iraque -onde está a democracia? Todo velho esquerdista lembra a resposta de Marx no "Manifesto Comunista" aos críticos que acusavam os comunistas de pretender minar a família, a propriedade etc.: é a própria ordem capitalista cuja dinâmica econômica está destruindo a ordem familiar tradicional (incidentalmente, um fato mais verdadeiro hoje do que na época de Marx) assim como expropriando a grande maioria da população. Na mesma linha, não são exatamente aqueles que hoje posam como defensores globais da democracia que a estão solapando de fato? Em um desvio retórico perverso, quando os líderes pró-guerra são confrontados com o fato brutal de que sua política está fora de sintonia com a maioria da população, eles recorrem à sabedoria comum de que "um verdadeiro líder lidera, não segue" -e isso vem de líderes geralmente obcecados pelas pesquisas de opinião... Os verdadeiros perigos são os de longo prazo. Em que reside talvez o maior perigo da perspectiva de ocupação americana no Iraque? O atual regime do Iraque é em última instância nacionalista e secular, sem ligação com o populismo fundamentalista muçulmano -é evidente que Saddam apenas flerta superficialmente com o consentimento muçulmano pan-árabe. Como seu passado demonstra claramente, ele é um governante pragmático que anseia por poder e que muda de alianças conforme seus objetivos -primeiramente contra o Irã, para tomar seus campos de petróleo, depois contra o Kuait, pelo mesmo motivo, atraindo contra si mesmo uma coalizão pan-árabe aliada dos EUA; o que Saddam não é é um fundamentalista obcecado pelo "grande Satã", disposto a explodir o mundo apenas para derrotá-lo. No entanto o que pode surgir em consequência da ocupação americana é precisamente um movimento muçulmano realmente fundamentalista e antiamericano, diretamente ligado a esses movimentos em outros países árabes ou países com presença muçulmana. Podemos supor que os EUA estejam conscientes de que a era de Saddam e seu regime não-fundamentalista está chegando ao fim e de que o ataque ao Iraque provavelmente é concebido como um ataque preventivo muito mais radical -não contra Saddam, mas contra o principal candidato à sucessão política de Saddam, um regime islâmico verdadeiramente fundamentalista. Dessa maneira, o círculo vicioso da intervenção americana se torna ainda mais complexo: o perigo é que a própria intervenção americana contribua para o surgimento do que os EUA mais temem -uma grande frente unida muçulmana antiamericana. É o primeiro caso de ocupação direta americana em um grande e importante país árabe -como isso não poderia gerar uma reação de ódio universal? Já podemos imaginar milhares de jovens sonhando em tornar-se homens-bomba e como isso obrigará o governo americano a impor um estado de emergência em alerta permanente... No entanto a essa altura não podemos resistir a uma tentação ligeiramente paranóica. E se as pessoas ao redor de Bush sabem disso? E se o tal "dano colateral" for o verdadeiro objetivo de toda a operação? E se o verdadeiro alvo da "guerra ao terror" for a própria sociedade americana, isto é, o disciplinamento de seus excessos emancipadores? Em 5 de março passado, no programa "Buchanan & Press" da rede NBC, foi mostrada na TV a foto do recém-capturado Khalid Shaikh Mohammed, o "terceiro homem da Al Qaeda" -um rosto maligno de bigodes, usando uma camisola de prisioneiro não identificada, entreaberta e com algo que se pareciam com hematomas não muito discerníveis (sugestão de que ele já havia sido torturado?), enquanto a voz rápida de Pat Buchanan perguntava: "Esse homem, que sabe todos os nomes e todos os planos detalhados de futuros ataques terroristas aos EUA, deveria ser torturado, para podermos arrancar tudo isso dele?".

"Sessões de ódio"


O horror disso era que a foto, com seus detalhes, já sugeria a resposta -não admira que a reação de outros comentaristas e ligações de espectadores tenha sido um avassalador "Sim!" -o que nos deixa nostálgicos dos bons e velhos tempos da guerra colonial na Argélia, quando a tortura praticada pelo Exército francês era um segredo sujo... Efetivamente, isso não era quase a concretização do que George Orwell imaginou em "1984", em sua visão das "sessões de ódio", nas quais exibem fotos dos traidores dos cidadãos, que devem vaiá-los e insultá-los?
E a história continua: um dia depois, em outra TV, a Fox, um comentarista disse que seria permitido fazer qualquer coisa com esse prisioneiro, não apenas privá-lo do sono, mas quebrar seus dedos etc. etc. porque ele é "um pedaço de lixo humano, sem qualquer direito". Essa é a verdadeira catástrofe: que essas declarações públicas sejam possíveis hoje.
Devemos portanto estar muito atentos para não lutar falsas batalhas: os debates sobre quão ruim é Saddam, mesmo sobre quanto custará a guerra etc., são debates falsos. O enfoque deveria ser para o que efetivamente acontece em nossas sociedades, sobre que tipo de sociedade está surgindo em consequência da "guerra ao terror". Em vez de falar sobre agendas conspiratórias ocultas, deveríamos mudar o enfoque para o que está acontecendo, que tipo de mudanças está ocorrendo aqui e agora. O resultado final da guerra será uma alteração de nossa ordem política.
O verdadeiro perigo pode ser melhor exemplificado pelo verdadeiro papel da direita populista na Europa: introduzir certos temas (a ameaça estrangeira, a necessidade de limitar a imigração etc.), que depois foram silenciosamente adotados não apenas pelos partidos conservadores, mas até pela política de fato dos governos "socialistas". Hoje a necessidade de "regulamentar" a situação de imigrantes etc. faz parte do consenso da corrente dominante: Le Pen realmente abordou e explorou problemas reais que preocupam as pessoas.
Somos quase tentados a dizer que, se não houvesse Le Pen na França, ele precisaria ter sido inventado: é a pessoa perfeita a quem amamos odiar, e esse ódio garante o amplo "pacto democrático" liberal, a identificação patética com os valores democráticos de tolerância e respeito à diversidade -no entanto, depois de gritar "horrível! Que obscuro e incivilizado! Totalmente inaceitável! Uma ameaça a nossos valores democráticos básicos!", os liberais ultrajados passaram a agir como um "Le Pen de face humana", a fazer a mesma coisa de modo mais "civilizado", seguindo as linhas do "mas os populistas racistas estão manipulando as preocupações legítimas das pessoas comuns, então precisamos tomar certas medidas!"...
Temos realmente aqui uma espécie de "negação da negação" hegeliana pervertida: em uma primeira negação, a direita populista perturba o consenso liberal asséptico ao dar voz à dissensão apaixonada, argumentando claramente contra a "ameaça estrangeira"; em uma segunda negação, o centro democrático "decente", no próprio gesto de pateticamente rejeitar essa direita populista, incorpora sua mensagem de maneira "civilizada" -enquanto isso, todo o campo de fundo das "regras não escritas" já mudou tanto que ninguém nem sequer percebe, e todo mundo fica aliviado de que a ameaça antidemocrática tenha terminado.
E o verdadeiro perigo é que algo semelhante acontecerá com a "guerra ao terror": "extremistas" como [o ultraconservador secretário da Justiça norte-americano] John Ashcroft serão descartados, mas seu legado permanecerá, imperceptivelmente entrelaçado no tecido ético invisível de nossas sociedades. Sua derrota será seu triunfo final: eles não serão mais necessários, já que sua mensagem será incorporada à corrente dominante.

quinta-feira, janeiro 30, 2003

Loucura histórica toma conta dos EUA



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O público nos EUA não está sendo só enganado. Está sendo ameaçado e mantido num estado de medo e ignorância permanente

Adoraria ver a queda de Saddam, mas não nos termos de Bush. E tampouco sob uma bandeira de hipocrisia tão desavergonhada
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JOHN LE CARRÉ


Os EUA entraram em um de seus períodos de loucura histórica, mas este é o pior da qual consigo me recordar -pior do que o macarthismo, pior do que a baía dos Porcos e, a longo prazo, potencialmente mais desastroso do que a Guerra do Vietnã.
A reação a 11 de setembro supera qualquer coisa que Osama poderia ter esperado, mesmo em seus sonhos mais maquiavélicos. Como nos tempos de McCarthy, os direitos e as liberdades dos cidadãos que fizeram dos EUA alvo da inveja do mundo estão sendo sistematicamente corroídos.
A perseguição movida contra estrangeiros residentes nos EUA continua, sem trégua. Homens "não-permanentes" de origem norte-coreana ou do Oriente Médio desaparecem, sendo mantidos detidos em segredo, com base em acusações secretas e em decisões secretas de juízes. Palestinos residentes nos EUA, que, antes de 11 de setembro, eram considerados apátridas e, portanto, não podiam ser deportados, estão sendo entregues a Israel para serem "reassentados" na faixa de Gaza e na Cisjordânia, lugares onde muitos deles nunca antes colocaram os pés.
Será que nós, aqui no Reino Unido, estamos jogando o mesmo jogo? Imagino que sim. Dentro de 30 anos seremos autorizados a saber.
A combinação de mídia americana obediente e interesses das grandes empresas está mais uma vez fazendo com que uma discussão que deveria estar sendo travada em praça pública se restrinja às colunas mais "nobres" da imprensa da Costa Leste americana: procure lá pela página 27 do primeiro caderno, se for capaz de encontrar e compreendê-la.
Nenhum governo americano até hoje manteve seus planos e propósitos em segredo tão grande. Se os serviços de inteligência não souberem de nada, então será o segredo mais bem guardado de todos. Vale lembrar que são essas as mesmas organizações que nos brindaram com a maior falha da história dos serviços de informações: o 11 de setembro.
A guerra iminente foi planejada anos antes de Osama bin Laden dar seu golpe, mas foi Osama quem a tornou possível.
Sem Osama, a junta Bush ainda estaria tentando explicar problemas complexos quanto o de como conseguiu ser eleita, em primeiro lugar; a Enron, o favorecimento desavergonhado que brinda àqueles que já são ricos demais e o descaso inconsequente com que trata os pobres do mundo, o ambientalismo e toda uma série de tratados internacionais unilateralmente rescindidos por ela.
É possível que também estivesse tendo de nos explicar por que apóia o descaso com que Israel continua a tratar resoluções da ONU que lhe dizem respeito.
Mas Osama, de modo muito conveniente, varreu tudo isso para debaixo do tapete. Agora os seguidores de Bush estão na crista da onda. Segundo nos dizem, 88% dos americanos são favoráveis à guerra. O orçamento norte-americano da Defesa foi acrescido de mais US$ 60 bilhões, chegando a cerca de US$ 360 bilhões.
Uma nova e magnífica geração de armas nucleares americanas se encontra em processo de produção, feita sob medida para responder com força igual às armas nucleares, químicas e biológicas que estão nas mãos dos "Estados delinquentes". Podemos todos respirar aliviados.
E os EUA não apenas estão decidindo de maneira unilateral quem pode ou não pode possuir tais armas. Também reservam para si o direito unilateral de posicionar suas próprias armas nucleares, sem pensar duas vezes, onde e quando consideram que seus interesses, amigos ou aliados estiverem sendo ameaçados.
Exatamente quem serão esses amigos e aliados nos próximos anos será, como sempre na política, um enigma. Você faz bons amigos e aliados, você os arma até os dentes. Um dia eles deixam de ser seus amigos e aliados. Você os derruba com uma bomba nuclear.
Vale a pena lembrar por quantas longas horas e quão seriamente o gabinete americano analisou a opção de usar uma arma nuclear contra o Afeganistão, na esteira de 11 de setembro.
Felizmente para todos nós, mas especialmente para os afegãos, cuja cumplicidade com o 11 de setembro foi muito menor do que a dos paquistaneses, os EUA se contentaram em usar bombas "convencionais" de 25 mil toneladas, que, ao que consta, causam tantos danos quanto uma arma nuclear pequena, de qualquer maneira. Mas da próxima vez será para valer.
Exatamente que guerra 88% dos americanos pensam estar apoiando está bem menos claro. Uma guerra por quanto tempo? A que custo em termos de vidas americanas? A que custo para o bolso do contribuinte americano? A que custo -pois a maioria desses 88% de americanos é feita de pessoas inteiramente decentes e humanas- em termos de vidas iraquianas?
Hoje isso deve ser um segredo de Estado, mas a operação Tempestade no Deserto custou ao Iraque pelo menos duas vezes o número de vidas perdidas pelos EUA perderam em toda a Guerra do Vietnã.
Como Bush e sua junta conseguiram desviar a ira da América de Osama bin Laden para Saddam Hussein é um dos grandes truques mágicos de relações públicas da história. Mas conseguiram. Uma sondagem de opinião recente mostrou que, hoje, 1 em cada 2 americanos acredita que foi Saddam o responsável pelo ataque ao World Trade Center.
Mas o público americano não está apenas sendo enganado. Está sendo ameaçado, intimidado, amedrontado e mantido num estado permanente de ignorância e medo, com a consequente dependência de suas lideranças. Se tudo sair como querem Bush e seus colegas conspiradores, a neurose cuidadosamente orquestrada deve conduzi-los à vitória sem surpresas na próxima eleição.
Quem não está do lado de Bush está contra ele. Pior ainda -veja seu discurso de 3 de janeiro-, está do lado do inimigo. É estranho, porque eu, por exemplo, estou inteiramente contra Bush, mas adoraria assistir à queda de Saddam -apenas não nos termos de Bush e pelos métodos dele. E tampouco sob uma bandeira de hipocrisia tão desavergonhada.
O colonialismo americano à velha moda está prestes a abrir suas asas de chumbo sobre todos nós. Mais "Americanos Tranquilos" [referência a "The Quiet American, livro de Graham Greene] estão se infiltrando em cidades insuspeitas do que no auge da Guerra Fria.
O discurso religioso farisaico que vai enviar as tropas americanas à guerra é talvez o aspecto mais nauseante dessa surreal guerra que está por vir. Bush possui o monopólio sobre as revelações de Deus. E Deus tem opiniões políticas muito específicas.
Deus escolheu a América para salvar o mundo de qualquer maneira que agradar à América.
Deus escolheu Israel para ser o foco da política norte-americana para o Oriente Médio, e qualquer pessoa que queira contestar essa idéia é: a) anti-semita; b) antiamericana; c) favorável ao inimigo; e d) terrorista.
Deus também tem algumas conexões bem assustadoras. Na América, onde todos os homens são iguais a Seus olhos, mesmo que não o sejam aos olhos uns dos outros, a família Bush inclui um presidente, um ex-presidente, um ex-diretor da CIA, o governador da Flórida e o ex-governador do Texas. Bush pai tem algumas boas guerras a seu favor em sua folha de serviços, além de uma reputação merecida por despejar a ira da América sobre Estados clientes desobedientes. Uma guerrinha que ele lançou pessoalmente, à mão, foi contra seu antigo colega da CIA, o panamenho Manuel Noriega, que lhe tinha prestado bons serviços durante a Guerra Fria, mas, quando esta terminou, acabou por querer ultrapassar seus limites devidos. Não dá para o poder se tornar muito mais nu e cru do que isso, e os americanos estão cientes disso.
Quer algumas dicas?
George W. Bush. 1978-84: alto executivo da Arbusto Energy/ Bush Exploration, empresa petrolífera. 1986-1990: executivo sênior da companhia petrolífera Harken.
Dick Cheney. 1995-2000: executivo-chefe da companhia petrolífera Halliburton.
Condoleezza Rice. 1991-2000: executiva sênior da companhia petrolífera Chevron, que batizou um petroleiro com o nome dela.
E assim por diante.
Mas nenhuma dessas associações casuais afeta a integridade da obra de Deus. Estamos falando de valores honestos. E sabemos onde seus filhos estudam.
Em 1993, quando o ex-presidente George Bush estava fazendo uma visita social ao sempre democrático reino do Kuait para receber seus agradecimentos por tê-lo libertado, alguém tentou matá-lo. A CIA acreditou que o "alguém" fosse Saddam Hussein. Isso explica o grito de Bush júnior: "Aquele homem tentou matar meu pai". Mas não é nada pessoal -é guerra. Ainda é necessária. Ainda é o desígnio de Deus. Ainda se trata de levar liberdade e democracia ao povo iraquiano pobre e oprimido.
Para ser membro aceitável da equipe de Bush, parece que também é preciso acreditar no Bem Absoluto e no Mal Absoluto, e Bush, com muita ajuda de seus amigos, familiares e Deus, está lá para nos dizer qual é qual. Acho que talvez eu seja do Mal por ter escrito este texto, terei de checar.
O que Bush se recusa a nos dizer é a verdade sobre o porquê de estarmos indo à guerra. O que está em jogo não é um tal de "eixo do mal", mas petróleo, dinheiro e vidas humanas. O azar de Saddam é que ele está sentado em cima do segundo maior campo de petróleo do mundo. O azar do vizinho Irã é possuir os maiores depósitos mundiais de gás natural. Bush quer os dois, e quem ajudá-lo a consegui-los vai receber uma fatia do bolo. Quem não ajudar não ganhará nada.
Se Saddam não tivesse o petróleo, ele poderia torturar e matar seus próprios cidadãos à vontade. Outros líderes o fazem diariamente -pense na Arábia Saudita, no Paquistão, na Turquia, na Síria, no Egito-, mas esses são nossos amigos e aliados.
Na realidade, desconfio que Bagdá não ofereça nenhum perigo real e imediato a seus vizinhos, e nenhum mesmo aos EUA ou ao Reino Unido. As armas de destruição em massa de Saddam Hussein, se é que ele ainda as tem, serão café pequeno comparadas às coisas que Israel ou os EUA poderiam atirar contra ele com aviso prévio de apenas cinco minutos. O que está em jogo não é uma ameaça militar ou terrorista iminente, mas o imperativo econômico do crescimento dos EUA.
O que está em jogo é a necessidade dos EUA de demonstrar sua hegemonia militar a todos nós -à Europa, à Rússia, à China e até mesmo à pobre e louca Coréia do Norte, sem falar no Oriente Médio, para mostrar quem é que manda na América em casa e quem será mandado pela América fora de suas fronteiras.
A interpretação mais generosa que pode ser feita da parte que Tony Blair desempenha em tudo isto é que ele achou que, cavalgando o tigre, pudesse direcioná-lo. Não conseguiu. Em lugar disso, conferiu a ele uma legitimidade falsa e uma voz macia. Hoje, temo que o mesmo tigre o tenha encurralado num canto do qual ele não consegue mais sair. Ironicamente, o próprio George W. pode estar se sentindo um pouco assim, também.
No Reino Unido unipartidário, Blair, com uma participação fraquíssima dos eleitores, foi eleito líder supremo por cerca de um quarto do eleitorado. Se a apatia pública continuar igual e os partidos de oposição tiverem resultados igualmente lamentáveis na próxima eleição, Blair ou seu sucessor poderão alcançar um poder igualmente absoluto, com uma porcentagem de votos ainda menor. É totalmente risível que, num momento em que Blair se fez encurralar num canto do ringue, nenhum dos líderes da oposição britânica consiga levantar um dedo contra ele. Mas essa é a tragédia do Reino Unido, assim como é da América: à medida que nossos governos mentem, distorcem os fatos e vão perdendo sua credibilidade e à medida que as supostas alternativas parlamentares a eles não fazem nada, o eleitorado simplesmente dá de ombros e olha para o outro lado. Os políticos nunca acreditam em quão pouco conseguem nos enganar.
Assim, o importante no Reino Unido não é qual partido político formará o governo após a debacle que já se pode antever, mas quem ocupará o assento do motorista.
A melhor chance de sobrevivência política pessoal de Blair se dará se, na última hora, os protestos mundiais e uma ONU fortalecida obrigarem Bush a empurrar sua arma de volta para dentro do coldre, sem dispará-la. Mas o que acontecerá quando o maior caubói do mundo voltar para a cidade, sobre seu cavalo, sem trazer a cabeça de um tirano para mostrar aos rapazes?
A pior chance de Blair se dará se, com ou sem a ONU, Bush nos arrastar para dentro de uma guerra que, se tivesse havido disposição em negociar energicamente, poderia ter sido evitada; uma guerra que não foi debatida democraticamente no Reino Unido, não mais do que o foi na América ou na ONU.
Com isso, Blair terá ajudado a provocar retaliações imprevisíveis, grande intranquilidade interna e caos regional no Oriente Médio. Ele terá provocado um retrocesso em nossas relações com a Europa e o Oriente Médio que poderá ser sentido por décadas futuras. Bem-vindo ao partido da Política Externa Ética.
Existe uma via intermediária, mas é difícil de ser seguida: Bush mergulha sem a aprovação da ONU, e Blair fica na margem do rio. Adeus ao relacionamento especial com os EUA.
O fedor do farisaísmo religioso que se espalha pelo ar americano lembra o Império Britânico no que ele tinha de pior. O manto de lorde Curzon cai mal sobre os ombros dos colunistas de Washington elegantemente conservadores.
Sinto ainda mais asco quando ouço meu primeiro-ministro aplicar seus sofismas de líder secundarista a essa aventura abertamente colonialista. Seus temores muito reais quanto ao terror são compartilhados por todas as pessoas de sã consciência. O que ele não consegue explicar é como equaciona uma investida mundial contra a Al Qaeda com um ataque territorial contra o Iraque.
Estaremos nessa guerra, se ela se concretizar, para garantir a folha de parreira de nosso relacionamento especial com a América, para agarrar nossa fatia do bolo petrolífero e porque, depois de todos os namoricos públicos vistos em Washington e Camp David, Blair não poderá deixar de comparecer ao altar.
"Mas será que vamos vencer, papai?"
"É claro que sim, meu filho. E tudo terá acabado enquanto você ainda estiver dormindo."
"Por quê?"
"Porque senão os eleitores de Bush vão ficar muito impacientes e podem decidir não votar nele, afinal."
"Mas será que vai haver gente morta, papai?"
"Ninguém que você conheça, meu bem. Só gente estrangeira."
"Vou poder ver na televisão?"
"Só se Bush disser que sim."
"E depois, vai ficar tudo normal outra vez? Ninguém mais vai fazer nada horrível?"
"Chega, meu filho, durma."
Há uma semana, um amigo americano meu na Califórnia foi até o supermercado local com um adesivo em seu carro dizendo "a paz também é patriótica". Quando terminou de fazer compras, o adesivo já tinha sido arrancado.



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Tradução de Clara Allain

segunda-feira, janeiro 06, 2003

República dos Silvas




Pela primeira vez as forças populares saem da marginalidade e podem marcar uma ruptura histórica com o passado colonial


Laymert Garcia dos Santos


A eleição de Lula e a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder devem configurar, sim, uma ruptura histórica, se a abertura de um possível que elas expressam for reiterada, aprofundada e desdobrada, tanto pela ação dos novos dirigentes quanto pela participação e pela força dos movimentos sociais, que agora saem da marginalidade em que se encontravam e se tornam interlocutores na cena política.
A ruptura só não aparece com toda a nitidez porque até hoje continuam sendo acintosamente maquiados o desastre da política econômica neoliberal e a derrota fragorosa de FHC e do PSDB, em razão desse mesmo desastre. Fernando Henrique Cardoso entrega a seu sucessor um país assustadoramente devastado, como bem demonstrou Francisco de Oliveira [sociólogo e professor da USP; é um dos principais intelectuais ligados ao PT] em texto recente; mas, graças a malabarismos de marketing e à complacência interesseira da mídia, ainda consegue manter admiravelmente no ar o simulacro de uma administração "moderna" e "competente", realidade virtual que durante oito anos se sobrepôs ao descalabro de sua atuação como presidente.

Decadência das elites

Um dia talvez nos apercebamos melhor de que, por trás da "finesse" de fachada, a era tucana foi uma época de grande decadência política, moral e intelectual das elites brasileiras. Quando _e se_ isso acontecer, poderemos avaliar melhor como a situação se degradou até se tornar intolerável para a maioria do povo brasileiro, que começou a apostar em suas próprias forças para sair do impasse e de uma agonia interminável.
Numa chave tradicional da esquerda, é possível ver em Lula a vitória do metalúrgico, do operário e do sindicalista. Em meu entender, é mais do que isso: é a vitória de homens e de mulheres do povo elevados pela primeira vez à direção do país, não como "self-made men" destacados do povo e recebidos pelas elites, mas como parte e expressão efetiva desse mesmo povo, e com ele compromissado.
Para perceber essa transformação inédita nas relações de poder que estão se esboçando, bastaria atentar para três sobrenomes que ocupam o primeiro plano do cenário político.
Em vez das velhas figuras manjadas da oligarquia e da burguesia, os Silvas: Luiz Inácio Lula da Silva, Benedita da Silva [ex-governadora do RJ, deixou o cargo na última quarta-feira], Marina Silva [ex-senadora e atual ministra do Meio Ambiente].
O que compartilham, inscrito no nome comum, a cabocla amazonense, a negra carioca e o nordestino emigrado para o Sul, senão a matriz de um povo brasileiro que parece querer assumir as rédeas de seu próprio destino?
A primeira grande ruptura é, portanto, com a dominação tradicional, que desde os tempos da colônia manteve o povo à margem da esfera da decisão política. Mas tal ruptura implica o abandono de uma subordinação multissecular que levava esse povo a dizer sempre amém às elites. Dito em poucas palavras: operou-se uma talvez imperceptível mudança _que não foi só na mentalidade, pois parece ter afetado a própria subjetividade_, e os brasileiros comuns deixaram de se ver como inferiores, passaram a achar que seus iguais poderiam e deveriam governar. De repente não era mais preciso ser "doutor" para ter autoridade...
Ruptura histórica e ruptura subjetiva vão sempre juntas (o que não significa, evidentemente, que elas sejam definitivas: nunca se está livre de restaurações e de regressões). E é isso que estamos experimentando. Mas, imersos na angustiante e permanente viração a que a era FHC nos empurrou, mal ousamos pensar nisso e escapar do horizonte imediato. Assim, foi com surpresa que recebi, de um amigo filósofo, um exemplar de seu livro sobre Espinosa, com a dedicatória: "Ao feliz cidadão de um país onde boas notícias ainda podem acontecer!".

Inversão do processo

Um outro aspecto da dinâmica que se instaura e que merece consideração é a provável e possível valorização da coisa pública. Como todos sabem _e os cientistas sociais não se cansam de sublinhar_, no Brasil, desde os tempos da colônia, o público sempre foi objeto de apropriação privada. Por isso mesmo, a cidadania nunca chegou a existir plenamente, a lei só se aplicava para os "outros", e a corrupção e a impunidade campeavam. O governo Lula pode começar a virar também essa página e inverter o sentido do processo, não só moralizando o serviço público, mas também recuperando o que foi desmantelado, dignificando os funcionários que foram insistentemente desqualificados pela política anti-social do neoliberalismo, introduzindo em escala nacional o orçamento participativo, formulando políticas verdadeiramente públicas, que não se resumem à mera gestão do Estado segundo as prerrogativas e os interesses do mercado.
Na frente externa, a mudança pode tomar a feição de uma inserção mais expressiva do Brasil na comunidade internacional e menos subserviente diante dos países do Norte; mas o mais importante é que o povo brasileiro vai deixar de "dar as costas" à América Latina, vai estabelecer laços solidários com os outros povos do continente e descobrir o que sempre lhe foi ocultado: nosso futuro comum. Por outro lado, e nesse mesmo sentido, a ruptura histórica que se dá no Brasil já se irradia e reverbera na Argentina, no Equador e em outros países, já atrai a atenção e acende esperanças.
Finalmente, é preciso mencionar um acontecimento excepcional que se tem tentado recalcar de todas as maneiras possíveis: a derrota da mídia brasileira, grande eleitora do candidato tucano. De fato, pela primeira vez o poder de persuasão e de manipulação da opinião pública não surtiu efeito _nem mesmo o terrorismo econômico, criminosamente orquestrado e competentemente divulgado para criar o pânico, foi capaz de demover a população de seu propósito de mudar. Os eleitores não se deixaram intimidar: entre a ausência de perspectiva que caracterizava a proposta tucana, morte anunciada, e a afirmação da abertura de um possível, os brasileiros decidiram correr o risco.



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Laymert Garcia dos Santos é professor do departamento de sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Tempo de Ensaio" (Companhia das Letras).

quinta-feira, dezembro 12, 2002

TRAVESÍA DE LA LITERATURA INGLESA
T. S. ELIOT
Y LAS SOMBRAS SÓLIDAS


Por Luis Miguel Aguilar



El suplemento La Jornada Semanal del 15 de marzo de 1987 incluyó una versión de José Emilio Pacheco a un fragmento de "Little Gidding", el último de los Cuatro Cuartetos de un clásico mexicano: T. S. Eliot. (Concedido lo cual, se impone la solicitud de otra concesión: el scholar norteamericano o inglés que ignore o no sospeche siquiera a Ramón López Velarde es simplemente un provinciano en el mal sentido.) No es la primera vez que este fragmento se traduce al español pero sí, quizá, la vez en que se ha traducido con más eficacia: aunque invaluable, la versión de Vicente Gaos tiene como todo lo pionero el dejo de lo arcaico, y la versión más reciente de José María Valverde sufre de una literalidad extrema y de un efecto conocido: algo que está en español pero que suena a inglés. A la versión de Pacheco le falta un poco de riesgo sobre todo en la elección y colocación de algunos adjetivos -"cara inclinada", "filoso escrutinio", "espíritu peregrino", "exasperado espíritu"-, pero la relectura hace a un lado el reparo para poner en el centro su virtud mayor: la nitidez. De cualquier modo este artículo no busca ser un ejercicio de injusticia con los traductores de Eliot al español sino compartir algunas notas escritas, o leídas, al margen de un fantasma.
El fragmento consta de 24 tercetos cuyo propósito explicitó el mismo Eliot en "Lo que Dante significa para mí": "... un pasaje con la pretensión de que fuera el equivalente más próximo que yo podía conseguir de un Canto del Infierno o del Purgatorio, tanto en su estilo como en su contenido. La intención, desde luego, era la misma que guiaba mis alusiones a Dante en La tierra baldía: sugerir a la mente del lector un paralelo, por medio de un contraste, entre el infierno y el purgatorio que Dante visitó y la escena alucinante que seguía a un ataque aéreo". En esta escena se aparece un espectro cuya posible identidad se ha debatido tantas veces como para volverse uno de los lotes más frecuentados en la industria Eliot. Pacheco lo recuerda en la "Nota al pie de Eliot" que acompaña su versión del fragmento: "¿Quién es el 'maestro muerto', el 'familiar espectro conjunto, a la vez íntimo e inidentificable'?" En decenas de volúmenes los comentaristas han propuesto sus hipótesis de trabajo: Virgilio, el mismo Dante, Swift, Milton, Mallarme, Yeats". Pacheco arriesga entonces el nombre de Ezra Pound para otra hipótesis: "En toda la crítica que hemos leído no figura nunca Pound entre los componentes del espectro. Sin embargo su presencia parece imponerse más que la de ningún otro. Si aceptamos que el poema es sobre todo un diálogo de ultratumba entre Eliot y Pound, los tercetos pueden considerarse también como una reflexión sobre las relaciones de maestro y discípulo y la responsabilidad moral del arte". En su nota Pacheco refiere que los rasgos del espectro "evocan directamente el rostro 'cocido por completo' (lo cotto aspetto, Inferno XV, verso 26) de Brunetto Latini, el mentor de Dante que lo oriento a escribir no en latín sino en lengua vulgar. Es decir, representó de algún modo para Dante el mismo papel que Ezra Pound para Eliot".
Esta hipótesis no solo parecería plausible sino que apela al sentimiento literario y de algún modo quisiera cumplir un deseo: el cierre óptimo, la avenencia eterna o resguardada en palabras luego de algunos resquemores y distanciamientos, para la amistad de dos poetas. La hipótesis, sin embargo, no es tan acertada; mejor dicho, es tan acertada como puede serlo cualquier lectura intensa del fragmento. El mismo Pacheco tiene el cuidado de decir que "las posibilidades de lectura que ofrecen los tercetos son infinitas". Sería añadible que incluso las posibilidades de una sola lectura, o las lecturas sucesivas de un solo lector, son también interminables. Yo arriesgaré aquí otra hipótesis sobre la identidad del fantasma, pero esto no quiere decir que mi lectura de los tercetos se quede pegada a esa identidad. En poesía toda feliz certeza de lectura se basa en la dichosa perpetuidad del equívoco. El que no tiene o no asume sus propios equívocos al leer no puede disfrutar de la certeza general ante la validez de algún verso o algún fragmento. Así es con este fantasma: no busco acertar con él sino permitirme un equivoco momentáneo de lectura, ya un desacierto desde el instante en que empiezo a formular la hipótesis o desde la próxima vez en que el placer que me de le relectura del fragmento dependa de mi capacidad o mi voluntad para equivocarme con él, para no quedarme pegado a mi certeza anterior.

Sobre el fantasma de los tercetos había otra hipótesis ligada también a un nombre que parece excéntrico pero que es central no sólo en este punto sino en casi toda la obra de Eliot: Jean Verdenal. Poco se sabe, o poco sé yo, sobre esta amistad de juventud de Eliot, hecha durante su estancia en París que comenzó en el otoño de 1910. En su libro Eliot's Early Years, Lyndall Gordon sólo lo menciona de este modo: "(Eliot) practicó su conversación en francés con el cuñado de (Jacques) Riviere, Alain-Fournier, e hizo un amigo personal, un estudiante de medicina cuyo nombre era Jean Verdenal (ambos morirían en la gran guerra)". El mismo Eliot se encargo de precisar el año y el sitio exacto de una de estas muertes en la dedicatoria de Prufrock and Other Observations: "For Jean Verdenal, 1889-1915/mort aux Dardanelles". Como parte de esta dedicatoria Eliot incluye un fragmento del Purgatorio (XXI, 133-136), en el cual el poeta napolitano Publio Papinio Estacio, autor de una Tebaida y una Aquileida, se recuerda como un admirador incondicional de la Eneida sin darse cuenta de que Virgilio oye su elogio. Cuando Dante le revela a Estacio que su acompañante es el mismo Virgilio, Estacio cae de rodillas para besarle los pies a su poeta pero Virgilio le dice que no haga tal porque es inútil: ambos son únicamente sombras. Estacio se incorpora y dice que esta es una prueba del amor que siente por él, al grado de olvidar la vanidad para tocarlo. El último verso de esta escena y de la dedicatoria a Verdenal cifra gran parte del proyecto o del trayecto posterior de Eliot:
tratando l'ombre come cosa salda.
Tratar a las sombras como cosa sólida: fue en gran medida el asunto de Eliot. (Esto amerita otro paréntesis: las obras de Eliot y López Velarde se han relacionado sobre todo en su tratamiento verbal y en la similitud de efectos poéticos que tendrían a Jules Laforgue como antecedente inmediato. Habría otra semejanza más profunda: lo mismo que Eliot, López Velarde trató también a los fantasmas como seres vivos -y viceversa.) Las sombras, sólidas, y las figuras humanas, como diría un personaje de The Cocktail Party, "meras proyecciones". El epígrafe que abre "La canción de amor de J. Alfred Prufrock", inmediatamente después de la dedicatoria a Verdenal, está sacado del Infierno, XXVII, 61-66: son las palabras de un "hombre de armas", Guido di Montefeltro, que "sin temor a la infamia" puede contar a Dante su historia porque desde "el fondo" en que se encuentran "jamás regresó al mundo vivo alguno". Mi mención de los personajes de Dante y sus anécdotas sólo buscan ubicar los fragmentos, no propiciar la inferencia de algún lazo más directo con Verdenal; más directo, es decir, de lo que establecen los versos por sí solos. Con esto quiero sugerir, también, que al citar o plagiar a Dante la mayoría de las veces Eliot primero robaba y después averiguaba si el robo, más allá de su valor, tenía otro empalme posible. Así, cuando Eliot sugiere a Brunetto Latini esto no querría decir que busca hacerlo encajar, necesariamente, con otro maestro afín o asociable, del mismo modo en que la conexión de Montefeltro con Verdenal no se basaría tanto en el hecho de que ambos fueran soldados (y aunque Eliot se detuvo a elogiar el pasaje sobre Montefeltro en su ensayo sobre "Dante"); para Eliot lo previo, lo pertinente, son las palabras sobre "el regreso al mundo" desde el submundo.

¿De qué "fondo sin retorno" volvió Eliot? Del mismo al que su obra regresó constantemente: la batalla marítima del 18 de marzo de 1915 por el control del estrecho de los Dardanelos, en el Mar Egeo, durante la primera guerra mundial. Los aliados franceses e ingleses sufrieron perdidas severas frente a los alemanes: buques de guerra y vidas humanas. Entre los combatientes franceses que murieron se encontraba, sin duda, Jean Verdenal.
La cantidad de versos y conexiones literarias que permitió o congregó este fantasma en la obra de Eliot requeriría una enumeración interminable. Abundan las líneas de Eliot que lo evocan o sugieren o aluden indirectamente. Es una imantación y una práctica (iba a poner "táctica") continua. Al picar en la obra de Eliot uno pica con frecuencia en los "huesos secos" que "no pueden dañar a nadie": uno topa muy seguido con la sombra sólida.
Al azar: Prufrock se ve como un Lázaro que ha vuelto de la muerte para contarlo todo. ¿Acaso no sería factible que su monólogo se dirigiera a alguien que no volvió de la muerte y no a una dama de sociedad; qué tal si Prufrock habla con el fantasma sobre sus tribulaciones con la sociedad y sus damas. Y por lo mismo propone y dispone de un tiempo eterno ("There will be time...") para continuar la conversación? El "tú y el yo", el "nosotros" que se va armando en el poema llega a un plácido discurrir entre algas marinas y ninfas hasta que voces humanas interrumpen y "nos ahogamos".
La carga elegiaca que hay en poemas de Eliot como "Gerontion" y la misma Tierra Baldía vendría también de la presencia de esa sombra y de su conversación con ella. ¿Quién es ese tú que aparece abruptamente en "Gerontion" como motivo de pérdida y lamento? Los mismos tiempos de la historia que conviven simultanea y alternamente en "Gerontion", las menciones a la guerra y a la imposibilidad de perdonar después de "tal conocimiento" de las cosas, parecería dirigirse al punto de encuentro entre la historia privada y la colectiva. Al mismo fantasma irían dirigidas varias de las referencias a la guerra y a los muertos, al mar y a la "muerte por agua", de La tierra baldía. (¿Hasta qué punto Eliot conectó al fantasma con los ritos de la vegetación y los mitos de Atis, Adonis y Osiris?). "El miedo en un puñado de polvo" es también el miedo en una burbuja de agua: Flebas, "el marinero fenicio que se ahogo". Stetson estuvo en "los barcos de Miles" (todavía no sé por qué todos los traductores de The Waste Land al español han dejado la palabra "Mylae"), es decir, estuvo en la primera guerra púnica en un obvio paralelo con los Dardanelos; el que interpela a Stetson le pregunta, famosamente, por el cadáver -su cadáver respectivo- que ha plantado en el jardín. Las alusiones a la endecha de El diablo blanco de John Webster (con el lobo o el perro al que hay que quitar de ahí para que no desentierre al muerto, y con la araña que confeccionara "nuestros obituarios") apuntan al mismo espectro, para no mencionar las alusiones a la canción de La tempestad de Shakespeare con los ojos del ahogado que se volvieron perlas bajo el agua. Incluso la cita de Baudelaire sobre el lector hipócrita que cierra "El entierro de los muertos" llevaría a lo mismo, a inquirir por el cadáver que todos llevamos enterrado dentro.
"¿Quién es el otro que camina siempre junto a ti?", pregunta alguien en "Lo que dijo el trueno" refiriéndose claramente a la compañía de una sombra; ¿quién, preguntaría uno, es ese "Coriolano roto" que revive por un momento gracias a "rumores etéreos" un poco después y en la misma sección del poema? Mucho de la profundidad y relevancia de Eliot al ocuparse del drama isabelino y más concretamente de las "tragedias de venganza" y del modo genial en que las adaptó a su obra, apuntan ahí también. Prufrock, con ironía celebrable, dice "No soy Hamlet" aunque sugiera que él también tiene un muerto que vengar; del mismo modo al final de la Tierra baldía el Hyeronimo de la Spanish Tragedy de Thomas Kyd finge demencia y habla en diversas lenguas para llegar al momento de la venganza; Eliot "apuntala sus fragmentos" multilingües no sólo contra sus ruinas sino para pelear como Hyeronimo por el muerto que le deben. En una de estas citas aparece de nuevo el Purgatorio (XXVI, 148): "Poi s'ascose nel foco che gli affina"; luego de pedir que se acomidan de su dolor, Arnaut Daniel regresa "al fuego que lo purifica". Eliot no sólo usó para Pound ("il migglior fabbro") la referencia a Arnaut Daniel en el Purgatorio; mejor dicho, solo una vez la usó para Pound: todas las otras, desde el libro de Poemas Ara vos prec hasta el sovenha vos de Miércoles de ceniza y pasando por los fragmentos eliminados de La tierra baldía, las palabras que se relacionan con Arnaut Daniel en el Purgatorio van para la sombra del francés Jean Verdenal.
Puede suponerse con facilidad que Verdenal sabía de literatura: al menos, como "hombre de acción", Eliot pudo asociarlo con el refinado Kurtz del Corazón de las tinieblas de Conrad. No a otra cosa obedece el epígrafe de Los hombre huecos: "Mistah Kurtz -he dead" y no a otra cosa se refiere este poema con "los que cruzaron al otro Reino de la muerte". Citar los fragmentos que Eliot desechó de La tierra baldía a sugerencia de Pound (el naufragio de Ulises y la exequia y la endecha referidas a "más muerte por agua") sería robar en despoblado.
El fantasma aparece en las zonas más inesperadas de la obra de Eliot. Mucho de lo persuasivo, contundente y al tiempo caprichoso de su crítica literaria surge también de esa gravitación espectral. Las citas que Eliot incluyó en su ensayo sobre "Los poetas metafísicos" parecen fragmentos al imán de ese fantasma. Sus diferencias con la poesía de Milton quedan zanjadas en, dónde más, un fragmento de la elegía de Milton a "Lycidas" y concretamente el pasaje en que Milton se refiere al modo en que su amigo ahogado "bajo la ola abrumadora/Visitó el fondo del mundo aterrador". Y con los autores modernos: después del Ulises, o al mismo tiempo, el texto que Eliot prefería de Joyce era el cuento "Los muertos", en que el fantasma de un joven muerto varios años atrás viene a quebrar un matrimonio dublinés. Igualmente, Eliot detestaba a D. H. Lawrence y sin embargo reconoció que "La sombra en el jardín de rosas" era un gran cuento: se trata de un matrimonio que en un jardín sufre la intromisión de una sombra solida, pero esta si viva: es un exnovio de la mujer que lleva uniforme militar y que se sienta en una de las bancas; está perfectamente desquiciado por la guerra y con los ojos perdidos; la mujer lo reconoce con horror pero él no la reconoce a ella. Todo esto podría llevarse al juego: Eliot despreciaba a Thomas Hardy pero si le hubiéramos hecho notar que algunos de los últimos poemas de Hardy incluían hermosos encuentros con un fantasma, tal vez habría aceptado que por esa vez Hardy no estuvo tan mal. Esto no disminuye en nada el trabajo de Eliot; al contrario, demuestra que la gran crítica literaria suele tener mucho de parcial y privada.
Lo mismo, por último, le ocurrió a Eliot con Shelley: no lo aceptó sino cuando Shelley llegó a acercarse al reino de las sombras. Eliot cita en The Cocktail Party un fragmento del Prometeo desencadenado de Shelley: se refiere al mago Zoroastro, "mi hijo muerto", que encontró "su propia imagen al caminar en el jardín". Shelley dice que hay dos mundos de la vida y de la muerte: uno, el que soportamos; otro, el que esta bajo la tumba, en el que habitan sombras de todo tipo que viven y piensan hasta que la muerte une a ambos mundos y a estos seres como en vida. El otro fragmento que Eliot rescataba de Shelley es, y con esto volvemos al punto, la parte de El triunfo de la vida en la que Shelley precedió al intento de Eliot en "Little Gidding": la imitación de la terza rima de Dante. Por cierto, el fantasma central de Shelley no necesita suposiciones porque él mismo se encargó de identificarlo: Rousseau.
Eliot recurrió al bombardeo nazi, al ataque de "la negra paloma con su lengua de llamas", para crear su escena dantesca. El fantasma aparece después del bombardeo y en un principio "parece revelarle" al poeta "a algún maestro muerto" (cito la versión de Pacheco):
A quien yo había conocido y olvidado;
medioevocaba
A uno y a muchos; en sus oscuros
rasgos
Los ojos de un familiar espectro
conjunto
A la vez íntimo e inidentificable.
Hasta aquí, en efecto, el fantasma parece un maestro hecho de muchos maestros, un Brunetto Latini construido con varias hipótesis; pero cinco versos adelante vemos que todavía "es una cara en formación" ante lo cual "bastaron las palabras/Para obligar al reconocimiento que precedían". En ese lugar "sin antes ni después" ambos se echan a caminar por la acera "en una ronda muerta". El poeta le pide al espectro que hable porque "tal vez yo no comprenda ni recuerde".
Y él: "No estoy dispuesto a repasar
Mis pensamientos y teorías que has
olvidado.
Sirvieron su propósito: dejémoslas en
paz".
Parecería irresistible conceder aquí que el fantasma tomó ya la cara de Pound: la referencia a los "pensamientos y teorías" solo podría ir a una relación maestro-discípulo, como guías y consejos que en el pasado "sirvieron a su propósito": concretamente a la edición de Pound de la Tierra baldía. Sin embargo el terceto bien podría referirse al recuerdo de meras, pero entrañables, conversaciones literarias de juventud. La pertinencia de esta lectura quedaría sujeta a una mayor pesquisa sobre las inclinaciones literarias de la sombra sólida que era inseparable de Eliot. De no ser así podría arriesgarse aún otra lectura: estas "teorías y pensamientos" se referirían no a cuestiones de preceptiva literaria sino de contenido. El fantasma estaría diciendo, como quien dice, "Te di tema". Pero aceptemos que esto no basta para borrar los rasgos de Pound de la cara del fantasma. En su "Nota al pie de Eliot", Pacheco refuerza aún más las facciones de Pound al darlo por aludido en un terceto posterior, cuando el espectro se refiere al último de "los dones reservados a la vejez" que le revelará al poeta "para coronar el esfuerzo de tu vida entera"; Pound tendría, o sufriría entonces, la conciencia.
De cosas mal hechas y hechas para
el daño de los demás
Que antes consideraste ejercicio
de la virtud.
Entonces hiere la aprobación del
tonto y los honores deshonran.
Pacheco destina estas palabras a los pecados de Pound, que estaba "del lado de Mussolini en el momento de los bombardeos" durante la segunda guerra mundial; pero querría decir que Pound se estaba regañando de antemano o al tiempo en que apenas cometía los pecados (y no quería dejar de cometerlos porque no los veía como tales); o querría decir que Eliot previó el modo en que acabaría Pound y lo regaño varios años antes del fin de la guerra y de su caída: "Little Gidding" se escribió en 1941 y en todo caso se publico en 1943. Sin embargo una vez más, nada impide sugerir que Eliot se "anticipara" o pusiera un correctivo moral en labios de Pound mientras que Pound defendía a Mussolini. No obstante, yo sugeriría otra cosa: el terceto es una autocrítica del mismo Eliot en boca del fantasma. Eliot critica algo menos grave que el mussolinismo: sus propios poemas de años anteriores, la vergüenza de haber tomado por "ejercicio de virtud" lo que era, para decirlo sin eufemismos, su santurronería y la dicha de sentirse mejor que las caricaturas grotescas -y disfrutables en cierto modo- que dirigió contra los Sweeneys, las Princesas Volupines, las Frescas, las Doris, las Grishkins, las tías Helen y las primas Harriet. Por otro lado, la alusión a Mallarmé y las palabras de la tribu en otro de los tercetos me parecerían un homenaje de Eliot a la lengua francesa que el espectro hablaba en vida.
En su "Nota al pie de Eliot", Pacheco se acerca de nuevo a lo que yo considero el centro del asunto cuando traduce también algunos versos de la parte IV de "Little Gidding"; estos versos siguen a los tercetos y ven a "las lenguas de fuego" como el "único remedio del error y del pecado". Pacheco localiza una contradicción que podría formularse así: ¿como es posible que Eliot vea en estos bombardeos alemanes algo parecido a una purificación? "La destrucción de Londres representa la catástrofe de la cultura europea", dice Pacheco, "y sin embargo Eliot no ve en ella el infierno sino el purgatorio". Pero el hecho de que Eliot los mezcle a ambos no es una excepción en su obra: el fantasma de siempre fundía en un mismo cuerpo las lecturas dantescas de Eliot hasta confundir el purgatorio y el infierno. En "Little Gidding" el fuego de las bombas no es infernal, o deja de serlo, porque la Indole del fantasma requiere que el fuego sea "purificador" del mismo modo en que lo era cerca del final de La tierra baldía: "Poi s'ascose nel foco che gli affina". Por lo mismo, los tercetos son la manera de unir dos mundos facilitándole el paso a un espectro que no desconocía el modo en que otros versos y procedimientos de Dante lo habían convocado o cifrado. Esta vez uno de los tercetos le permite ir de un mundo al otro sin barreras:
Como ahora el paso no ofrece obstáculo
Al espíritu insatisfecho y peregrino
Entre dos mundos que se han vuelto muy
semejantes,
y aquí puede interrumpirse la continuidad entre este terceto y el que sigue para recordar únicamente un fragmento descartado de La tierra baldía, que iría en la parte final junto con las escenas del derrumbe de Europa en la primera guerra, y en la que un hombre fantasmal dice:
"Me parece que morí desde hace tiempo:
No digas nada sobre mi al otro mundo".
Es este mismo espectro el que ahora, en "Little Gidding" se ha abierto paso "al otro mundo", al mundo de los vivos, y que relata:
Así encuentro palabras que no pensé decir
En calles que no creí que volvería a ver.
En inglés este "volvería a ver" es "should revisit". Se entiende que Pacheco haya evitado el "revisitar" pero es probable que el verbo se refiera, en efecto, a "otra visita" luego de las veces en que el espectro, cuando aún no lo era y era joven, visitó con Eliot las calles de Londres. Con esta aclaración, cito de nuevo para llegar al verso que me importa:
En calles que no creí que volvería a ver
Cuando dejé mi cuerpo en una playa,
remota.
Esta "playa" o esta "costa remota", esta "distant shore", no puede sino traer vientos marinos del estrecho de los Dardanelos en que murió Jean Verdenal.
Mis notas no quieren llevar a Eliot por una calle de un solo sentido ni infligirle el "dolor de vivir de nuevo", como dice el espectro en otro terceto, algo de "cuanto has hecho y has sido". Borges tiene razón: trabajo le cuesta a un poeta extraer una obra de la experiencia y las humillaciones, la lectura y la desgracia, la felicidad y el recuerdo, el olvido y la fatiga; trabajo cuesta borrar las huellas para que luego venga alguien a ponerlas de nuevo, a desandar el camino rumbo al caos previo. Pero en realidad las obras no son tan inermes y el caos es finalmente irrestituible: lo es mientras certeza y equivoco intercambien papeles, se anulen a cada lectura y al impedirse mutuamente el regreso al caos contribuyan al orden de las obras.
En una bóveda de alguna universidad norteamericana cuyo nombre no recuerdo, hay el total de unos mil documentos que se conocen como "Los papeles de Emily Hale", una amiga con la que Eliot se carteó largamente y a la que visitó con frecuencia durante sus viajes a Estados Unidos. Estos papeles se encuentran sellados y sólo se abrirán en una fecha tentativa: a la vuelta del año 2,000 o poco después, cuando hayan muerto todos los posibles afectados por lo que estos documentos pudieran contener. Si en 1971 la decisión de la viuda de Eliot de publicar el facsímil y los borradores de La tierra baldía produjo una feria de suposiciones y un ensanchamiento de la industria Eliot, ya hay varios scholars que se frotan las manos ante el posible contenido de esos papeles que, se dice, revelarán al fin todos los misterios sobre la obra de Eliot. Lo que no revelarán es el misterio mayor de esa obra, el misterio que la protege de la revelación de todos los misterios: una obra que en cada lectura se "olvida" de sí misma, regresa a sus orígenes como Flebas, y que espera a la siguiente lectura para volver a transformarse en algo siempre "rico y extraño" como el cuerpo de Alonso de Nápoles y sus evoluciones submarinas en La tempestad.
Nexos 113, mayo de 1987

quinta-feira, novembro 28, 2002

A literatura contra o efêmero

por Umberto Eco
(O ensaísta italiano fala sobre a permanência dos clássicos na era da realidade virtual)

Para que serve a literatura?
Eu poderia dizer que ela não serve para nada, mas uma visão tão crua do prazer literário corre o risco de igualar a literatura ao jogging ou às palavras cruzadas

Os grandes livros contribuíram para formar o mundo. A "Divina Comédia", de Dante, por exemplo, foi fundamental para a criação da língua e da nação italianas. Certos personagens e situações literárias oferecem liberdade na interpretação dos textos, outros se mostram imutáveis e nos ensinam a aceitar o destino.
Reza a lenda, e "se non è vera, è ben trovata", que certa vez Stálin perguntou quantas divisões tinha o papa. O que ocorreu nas décadas seguintes provou que, sem dúvida, as divisões são importantes em determinadas situações, mas não são tudo. Existem poderes imateriais cujo peso não se pode medir, mas que ainda assim pesam.
Estamos rodeados de poderes imateriais, que não se restringem aos chamados valores espirituais, como os das doutrinas religiosas. Também é um poder imaterial o das raízes quadradas, cuja rígida lei resiste aos séculos e aos decretos, não só de Stálin, mas do próprio papa. E entre esses poderes eu incluiria também o da tradição literária, isto é, do complexo de textos que a humanidade produziu e produz, não com fins práticos, mas "gratia sui", por amor a si mesma, e que são lidos por prazer, elevação espiritual ou para ampliar os conhecimentos.
É verdade que os objetos literários são imateriais em parte, pois geralmente encarnam em veículos de papel. Mas houve um tempo em que eles encarnavam na voz de quem recordava uma tradição oral, ou entalhados em pedra, e hoje estamos discutindo o futuro dos e-books.
Mas para que serve esse bem imaterial, a literatura? Eu poderia responder, como já fiz noutras vezes, dizendo que ela é um bem que se consuma "gratia sui" e que portanto não serve para nada. Mas uma visão tão crua do prazer literário corre o risco de igualar a literatura ao jogging ou às palavras cruzadas, que, além do mais, também servem para alguma coisa, seja manter o corpo saudável, seja enriquecer o léxico.
Do que estou tentando falar é, portanto, da série de funções que a literatura tem na nossa vida individual e social.
A literatura mantém a língua em exercício e, sobretudo, a mantém como patrimônio coletivo. A língua, por definição, vai para onde ela quer, nenhum decreto superior, nem político nem acadêmico, pode interromper seu caminho nem desviá-lo para situações que se pretendem ótimas. A língua vai para onde quer, mas é sensível às sugestões da literatura. Sem Dante não teria existido um italiano unificado. Dante, em "De Vulgari Eloquentia", analisa e condena os vários dialetos italianos, propondo-se a forjar uma nova língua vulgar ilustrada.
Ninguém apostaria nada nesse gesto de soberba, mas, com a "Comédia", Dante ganhou o desafio. É verdade que vários séculos tiveram de passar para que o vulgar dantesco se tornasse uma língua falada por todos, e só o conseguiu porque a comunidade dos que acreditavam na literatura continuou a se inspirar naquele modelo. Sem esse modelo, talvez nem sequer tivesse vingado a idéia de uma unidade política.
Mas a prática literária também mantém em exercício nossa língua individual. Hoje muitos lamentam o surgimento de uma linguagem neotelegráfica que se impõe por meio do correio eletrônico e das mensagens nos celulares, em que até para dizer "te amo" se usa uma sigla. Mas não esqueçamos que os jovens que trocam mensagens utilizando essa nova taquigrafia são, ao menos em parte, os mesmos que se apinham nas novas catedrais do livro, as megalivrarias, onde, mesmo que só folheando sem comprar, eles têm contato com estilos cultos e elaborados, aos quais não foram expostos nem seus pais nem seus avós.
A leitura das obras literárias obriga a um exercício de fidelidade e de respeito dentro da liberdade de interpretação. Há uma perigosa heresia crítica, típica dos dias de hoje, segundo a qual é possível fazer qualquer coisa com uma obra literária. Não é verdade. As obras literárias convidam à liberdade de interpretação porque propõem um discurso com muitos planos de leitura, defrontando-nos com a ambiguidade da linguagem e da vida. Mas, para poder intervir nesse jogo, em que cada geração lê as obras literárias de um modo diferente, é preciso ter profundo respeito por aquilo que chamo a intenção do texto.
No final do capítulo 35 de "O Vermelho e o Negro", diz-se que Julien Sorel vai à igreja e atira contra Madame de Rênal. Tendo observado que o braço do protagonista tremia, Stendhal diz que Julien dá um primeiro tiro, mas erra o alvo, depois dá um segundo, e a senhora cai. É possível sustentar que o tremor de seu braço, acrescido do fato de errar o primeiro tiro, indicam que Julien não foi à igreja com um firme propósito homicida, mas antes movido por um confuso impulso passional. A essa interpretação é possível contrapor outra: que Julien tinha desde o início a intenção de matar, mas era um covarde. A partitura autoriza ambas as interpretações.
Alguém também pode perguntar onde foi parar a primeira bala, o que é uma boa dúvida para os devotos stendhalianos. Assim como os devotos de Joyce vão a Dublin para procurar a farmácia onde Bloom teria comprado um sabonete em forma de limão, podemos imaginar devotos stendhalianos tentando descobrir em que lugar do mundo fica Verrières e sua igreja, esquadrinhando todas as colunas do templo em busca do buraco daquela bala. Seria um episódio de fanatismo bastante divertido. Mas suponhamos agora que um crítico pretenda basear toda sua interpretação do romance no destino da tal bala perdida. Nos tempos que correm, isso não é inverossímil, até porque houve quem baseasse toda a sua leitura de "A Carta Roubada", de Poe, na posição da carta em relação à lareira. Mas, se para Poe a posição da carta é explicitamente pertinente, Stendhal diz que nunca se soube mais nada daquela primeira bala, excluindo-a assim do conjunto de entidades fictícias.
Sendo fiel ao texto stendhaliano, essa bala se perdeu definitivamente, e onde ela foi parar é irrelevante do ponto de vista narrativo. Por outro lado, o que se cala em "Armance" sobre a possível impotência do protagonista incita o leitor a tecer frenéticas hipóteses para completar aquilo que o relato não diz, ao passo que, em "Os Noivos", de Alessandro Manzoni, uma frase como "a desventurada respondeu" não diz até que ponto Gertrude levou seu pecado com Egidio, mas o halo escuro de hipóteses induzidas ao leitor aumenta o fascínio dessa página tão pudicamente elíptica.
Para muitos, essas coisas poderão parecer obviedades, mas tais obviedades (muitas vezes esquecidas) confirmam o mundo da literatura como inspirador da fé na existência de certas proposições que não podem ser postas em dúvida, com o que ele oferece um modelo de verdade, ainda que imaginário.
Migração
Podemos fazer afirmações verdadeiras sobre personagens literários porque o que lhes acontece está registrado em um texto, e um texto é como uma partitura musical. É verdade que Anna Karenina se suicida, assim como é verdade que a "Quinta Sinfonia" de Beethoven foi escrita em dó menor (e não em fá maior, como a "Sexta") e se inicia com "sol, sol, sol, mi bemol". Mas certos personagens literários, não todos, acabam saindo do texto em que nasceram e migrando para uma região do universo muito difícil de delimitar.
Foram emigrando de texto em texto (e, por meio de várias adaptações, de livro para filme ou balé, ou da tradição oral para o livro) tanto personagens dos mitos como da narrativa "leiga": Ulisses, Jasão, o rei Artur ou Percival, Alice, Pinóquio, D'Artagnan. Mas, quando falamos de personagens desse tipo, referimo-nos a uma determinada partitura? Vejamos o caso de Chapeuzinho Vermelho. As duas versões mais célebres, a de Perrault e a dos irmãos Grimm, têm profundas diferenças. Na primeira, a menina é devorada pelo lobo, a história termina aí, inspirando portanto severas reflexões moralistas sobre os riscos da imprudência. Na segunda, aparece o caçador, que mata o lobo e devolve a vida à garota e à avó. Final feliz.
Pois bem, imaginemos uma mãe que conte a história para seus filhos e a encerre com o lobo devorando Chapeuzinho. As crianças protestariam e pediriam a "verdadeira" história, aquela em que Chapeuzinho ressuscita, e de nada valeria a mãe declarar ser uma filóloga estritamente ciosa das fontes literárias. As crianças conhecem uma história "verdadeira" em que Chapeuzinho de fato ressuscita, e essa história é mais afim à versão dos Grimm que à de Perrault.
Esses personagens se tornaram coletivamente verdadeiros, de certo modo, porque ao longo dos séculos a comunidade fez um investimento afetivo neles. Fazemos investimentos afetivos individuais em muitas fantasias que criamos nos nossos devaneios. Podemos realmente nos comover pensando na morte de uma pessoa amada, ou ter sensações físicas ao imaginar um contato erótico com essa pessoa. De modo semelhante, por meio de um processo de identificação ou de projeção, podemos nos comover com a sorte de Emma Bovary ou, como ocorreu com algumas gerações, sermos levados ao suicídio pelos sofrimentos de Werther ou de Jacopo Ortis. Mas, se alguém nos perguntasse se de fato morreu a pessoa cuja morte imaginamos, responderíamos que não, que foi apenas uma fantasia privadíssima. Contudo, se nos perguntassem se realmente Werther se matou, responderíamos que sim, e essa fantasia não é mais privada, mas uma realidade cultural com que toda a comunidade de leitores concorda. Tanto que julgaríamos louco quem se suicidasse por ter imaginado a morte da amada (sabendo que se trata de fruto de sua imaginação), ao passo que tentaríamos de algum modo justificar a atitude de quem se matasse por causa do suicídio de Werther, mesmo sabendo que se trata de um personagem fictício.
Teríamos então de encontrar a região do universo em que esses personagens vivem e determinam nosso comportamento, tanto que os tomamos como modelo de vida, própria e alheia, e entendemos muito bem quando se diz que alguém sofre de complexo de Édipo, tem uma fome de Pantagruel, um comportamento quixotesco, os ciúmes de um Otelo, uma dúvida hamletiana ou é um don Juan incorrigível.
Contudo hoje há quem diga que também os personagens literários correm o risco de se tornar fugazes, mutáveis, inconstantes, de perder aquela fixidez que nos impedia negar seu destino. Entramos na era do hipertexto, e o hipertexto eletrônico nos permite não apenas viajar dentro de um novelo textual (seja uma enciclopédia inteira ou a obra completa de Shakespeare) sem necessariamente ter de "desenrolar" toda a informação que ele contém, penetrando-o como uma agulha de tricô num novelo de lã. Graças ao hipertexto, nasceu também a prática de uma escritura inventiva livre. Na Internet há programas para escrever histórias em grupo, em que os participantes tecem narrações cujos rumos podem ser modificados até o infinito.
Pensem no seguinte: vocês leram "Guerra e Paz" com paixão, se perguntando se Natasha por fim cederia às lisonjas de Anatol, se o maravilhoso príncipe Andrea realmente morreria, se Pierre teria coragem de atirar em Napoleão, e agora vocês podem refazer seu Tolstói, dando a Andrea uma vida longa e feliz, transformando Pierre no libertador da Europa. E, muito mais, vocês podem reconciliar Emma Bovary, agora mãe feliz e pacificada, com seu pobre Charles; fazer Chapeuzinho Vermelho entrar no bosque e encontrar Pinóquio ou então ser raptada pela madrasta e obrigada a trabalhar com o nome de Cinderela para Scarlett O'Hara, ou então encontrar no bosque um mágico chamado Vladimir Propp, que lhe dá um anel encantado graças ao qual ela descobrirá, ao pé da bananeira sagrada dos tugues, o Aleph, aquele ponto de onde se vê todo o universo. E Anna Karenina não morrerá esmagada nos trilhos porque, sob o governo de Putin, os trens russos de bitola estreita funcionam pior do que os submarinos, enquanto longe, muito longe, além do espelho de Alice, Jorge Luis Borges lembra a Funes, o memorioso, que não se esqueça de devolver "Guerra e Paz" à biblioteca de Babel.
Seria isso errado? Não, porque também a literatura já o fez, e antes dos hipertextos, com o projeto de "Le Livre", de Mallarmé, os cadáveres "exquis" dos surrealistas, os milhões de poemas de Queneau, os livros móveis da segunda vanguarda.
Iuri Lotman, em "Cultura e Explosão", retoma a famosa recomendação de Tchecov segundo a qual, se no início de uma narração ou de um drama se mostra um fuzil pendurado na parede, antes do fim esse fuzil deverá disparar. Lotman dá a entender que o verdadeiro problema é se o fuzil realmente disparará. É justamente o fato de não saber se o fuzil disparará ou não que confere significância ao enredo. Ler uma história também é ser capturado por uma tensão, por um espasmo. Saber se no final o fuzil disparou ou deixou de disparar não tem o simples valor de uma notícia.
É a descoberta de que as coisas aconteceram, e para sempre, de certo modo, à margem do desejo do leitor. O leitor deve aceitar essa frustração e, por meio dela, sentir o tremor ante o Destino. Se pudéssemos decidir o destino dos personagens, seria como ir ao balcão de uma agência de viagens: "Então, onde o senhor quer encontrar a Baleia, em Samoa ou nas Aleutas? E quando? Deseja matá-la o senhor mesmo ou deixa o serviço para Queequeg?". A verdadeira lição de "Moby Dick" é que a baleia vai para onde ela quer.
Pelos olhos de Deus
Pensem na descrição que Hugo faz da batalha de Waterloo em "Os Miseráveis". Diferentemente de Stendhal, que descreve a batalha pelos olhos de Fabrizio, que está dentro dela e não entende o que está acontecendo, Hugo a descreve pelos olhos de Deus, vê a cena do alto: sabe que, se Napoleão soubesse que além da crista do Mont Saint-Jean havia um precipício (o que seu guia omitira), os couraceiros de Milhaud não teriam sucumbido aos pés do exército inglês; que, se o pastorzinho que guiava Bülow tivesse sugerido outro percurso, a esquadra prussiana não teria chegado a tempo de decidir a sorte da batalha.
Numa estrutura hipertextual, poderíamos reescrever a batalha de Waterloo fazendo com que os franceses de Grouchy chegassem antes dos alemães de Blücher, e já existem divertidos jogos de guerra que nos permitem fazer isso. Mas a trágica grandeza daquelas páginas de Hugo reside no fato de (à margem do nosso desejo) as coisas acontecerem como acontecem. A beleza de "Guerra e Paz" está em que a agonia do príncipe Andrea termine com a morte, por mais que essa morte nos desagrade.
A dolorosa maravilha que cada releitura de um grande clássico nos proporciona se deve a que seus heróis, que poderiam fugir de um fim atroz, por debilidade ou por cegueira, não entendem contra o que se debatem e se precipitam no abismo que cavaram com os próprios pés. Por outro lado, Hugo disse, depois de mostrar as oportunidades que Napoleão poderia ter aproveitado: "Era possível que Napoleão ganhasse essa batalha? A resposta é não. Por quê? Por causa de Wellington? Por causa de Blücher? Não. Por causa de Deus".
É isso o que dizem todas as grandes histórias, sendo possível, em todo caso, substituir Deus pelo destino ou pelas leis inexoráveis da vida. A função das narrativas imodificáveis é justamente essa: contrariando nosso desejo de mudar o destino, nos fazem experimentar a impossibilidade de mudá-lo. E assim, que seja a história que elas contem, contarão também a nossa, e é por isso que as lemos e as amamos. Necessitamos de sua severa lição "repressiva". A narrativa hipertextual pode educar para o exercício da criatividade e da liberdade. Isso é bom, mas não é tudo. As histórias "já feitas" nos ensinam também a morrer. Creio que essa educação para o fado e para a morte é uma das principais funções da literatura. Talvez existam outras, mas agora me escapam.

Umberto Eco é escritor e semiólogo italiano, autor de, entre outros, "A Ilha do Dia Anterior" e "O Pêndulo de Foucault", ambos da Record. O texto acima é uma versão de um discurso do autor sobre as funções da literatura.

Tradução de Sergio Molina.
Copyright "La Nación" e "Corriere della Sera".