segunda-feira, janeiro 06, 2003

República dos Silvas




Pela primeira vez as forças populares saem da marginalidade e podem marcar uma ruptura histórica com o passado colonial


Laymert Garcia dos Santos


A eleição de Lula e a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder devem configurar, sim, uma ruptura histórica, se a abertura de um possível que elas expressam for reiterada, aprofundada e desdobrada, tanto pela ação dos novos dirigentes quanto pela participação e pela força dos movimentos sociais, que agora saem da marginalidade em que se encontravam e se tornam interlocutores na cena política.
A ruptura só não aparece com toda a nitidez porque até hoje continuam sendo acintosamente maquiados o desastre da política econômica neoliberal e a derrota fragorosa de FHC e do PSDB, em razão desse mesmo desastre. Fernando Henrique Cardoso entrega a seu sucessor um país assustadoramente devastado, como bem demonstrou Francisco de Oliveira [sociólogo e professor da USP; é um dos principais intelectuais ligados ao PT] em texto recente; mas, graças a malabarismos de marketing e à complacência interesseira da mídia, ainda consegue manter admiravelmente no ar o simulacro de uma administração "moderna" e "competente", realidade virtual que durante oito anos se sobrepôs ao descalabro de sua atuação como presidente.

Decadência das elites

Um dia talvez nos apercebamos melhor de que, por trás da "finesse" de fachada, a era tucana foi uma época de grande decadência política, moral e intelectual das elites brasileiras. Quando _e se_ isso acontecer, poderemos avaliar melhor como a situação se degradou até se tornar intolerável para a maioria do povo brasileiro, que começou a apostar em suas próprias forças para sair do impasse e de uma agonia interminável.
Numa chave tradicional da esquerda, é possível ver em Lula a vitória do metalúrgico, do operário e do sindicalista. Em meu entender, é mais do que isso: é a vitória de homens e de mulheres do povo elevados pela primeira vez à direção do país, não como "self-made men" destacados do povo e recebidos pelas elites, mas como parte e expressão efetiva desse mesmo povo, e com ele compromissado.
Para perceber essa transformação inédita nas relações de poder que estão se esboçando, bastaria atentar para três sobrenomes que ocupam o primeiro plano do cenário político.
Em vez das velhas figuras manjadas da oligarquia e da burguesia, os Silvas: Luiz Inácio Lula da Silva, Benedita da Silva [ex-governadora do RJ, deixou o cargo na última quarta-feira], Marina Silva [ex-senadora e atual ministra do Meio Ambiente].
O que compartilham, inscrito no nome comum, a cabocla amazonense, a negra carioca e o nordestino emigrado para o Sul, senão a matriz de um povo brasileiro que parece querer assumir as rédeas de seu próprio destino?
A primeira grande ruptura é, portanto, com a dominação tradicional, que desde os tempos da colônia manteve o povo à margem da esfera da decisão política. Mas tal ruptura implica o abandono de uma subordinação multissecular que levava esse povo a dizer sempre amém às elites. Dito em poucas palavras: operou-se uma talvez imperceptível mudança _que não foi só na mentalidade, pois parece ter afetado a própria subjetividade_, e os brasileiros comuns deixaram de se ver como inferiores, passaram a achar que seus iguais poderiam e deveriam governar. De repente não era mais preciso ser "doutor" para ter autoridade...
Ruptura histórica e ruptura subjetiva vão sempre juntas (o que não significa, evidentemente, que elas sejam definitivas: nunca se está livre de restaurações e de regressões). E é isso que estamos experimentando. Mas, imersos na angustiante e permanente viração a que a era FHC nos empurrou, mal ousamos pensar nisso e escapar do horizonte imediato. Assim, foi com surpresa que recebi, de um amigo filósofo, um exemplar de seu livro sobre Espinosa, com a dedicatória: "Ao feliz cidadão de um país onde boas notícias ainda podem acontecer!".

Inversão do processo

Um outro aspecto da dinâmica que se instaura e que merece consideração é a provável e possível valorização da coisa pública. Como todos sabem _e os cientistas sociais não se cansam de sublinhar_, no Brasil, desde os tempos da colônia, o público sempre foi objeto de apropriação privada. Por isso mesmo, a cidadania nunca chegou a existir plenamente, a lei só se aplicava para os "outros", e a corrupção e a impunidade campeavam. O governo Lula pode começar a virar também essa página e inverter o sentido do processo, não só moralizando o serviço público, mas também recuperando o que foi desmantelado, dignificando os funcionários que foram insistentemente desqualificados pela política anti-social do neoliberalismo, introduzindo em escala nacional o orçamento participativo, formulando políticas verdadeiramente públicas, que não se resumem à mera gestão do Estado segundo as prerrogativas e os interesses do mercado.
Na frente externa, a mudança pode tomar a feição de uma inserção mais expressiva do Brasil na comunidade internacional e menos subserviente diante dos países do Norte; mas o mais importante é que o povo brasileiro vai deixar de "dar as costas" à América Latina, vai estabelecer laços solidários com os outros povos do continente e descobrir o que sempre lhe foi ocultado: nosso futuro comum. Por outro lado, e nesse mesmo sentido, a ruptura histórica que se dá no Brasil já se irradia e reverbera na Argentina, no Equador e em outros países, já atrai a atenção e acende esperanças.
Finalmente, é preciso mencionar um acontecimento excepcional que se tem tentado recalcar de todas as maneiras possíveis: a derrota da mídia brasileira, grande eleitora do candidato tucano. De fato, pela primeira vez o poder de persuasão e de manipulação da opinião pública não surtiu efeito _nem mesmo o terrorismo econômico, criminosamente orquestrado e competentemente divulgado para criar o pânico, foi capaz de demover a população de seu propósito de mudar. Os eleitores não se deixaram intimidar: entre a ausência de perspectiva que caracterizava a proposta tucana, morte anunciada, e a afirmação da abertura de um possível, os brasileiros decidiram correr o risco.



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Laymert Garcia dos Santos é professor do departamento de sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Tempo de Ensaio" (Companhia das Letras).