PERGUNTA AOS SENHORES DO MUNDO
PIERRE BOURDIEU
17/OUTUBRO/1999 – BOURDIEU DESAFIA A MÍDIA INTERNACIONAL O sociólogo francês defende a exceção cultural e os valores da arte em palestra a empresários, em Paris. ( do "Libération" )
Eles foram recebidos por Jacques Chirac e Lionel Jospin, adulados pelos ministros, convidados para banquetes nos palácios da República. Cerca de 70 grandes empresários do setor audiovisual que estiveram em Paris, na última semana, a convite de Pierre Lescure (Canal Plus) não esquecerão a viagem.
Oficialmente tratava-se da reunião anual do Conselho Internacional do Museu da Televisão e do Rádio (sediado em Nova York), uma espécie de clube informal das grandes empresas de mídia. Entre os presentes, Peter Chernin (presidente da Fox), Conrad Black (Hollinger), Thomas Middelhoff (Bertelsmann), Greg Dyke (BBC), Fedele Confalonieri (Mediaset), Rémy Sautter (CLT-UFA), Tim Koogle (Yahoo) etc., mais alguns eminentes representantes dos fundos de investimentos americanos e do mundo político: Jacques Delors, Henry Kissinger, Viviane Reding (comissária européia para a cultura).
Oficiosamente, os senhores da imagem viram-se "vítimas" de uma espetacular operação de encantamento, com o objetivo de sensibilizá-los para a idéia muito francesa da "exceção cultural". É que o tempo urge. No próximo mês começa em Seattle uma nova rodada de negociações comerciais patrocinada pela Organização Mundial do Comércio (OMC). A França quer "absolutamente" que a comunicação audiovisual seja excluída do campo de debates: o espectro do Acordo Multilateral sobre Investimentos (AMI) ainda ronda.
"Reivindicamos apenas o direito de manter nossa produção", pediu na última terça-feira Lionel Jospin, "pois trata-se de um fator essencial para nós: a diversidade cultural. Nada seria mais perigoso que um universo em que globalização rimasse com uniformização".
Na segunda-feira, em Luxemburgo, os Quinze não chegaram a acordo sobre uma plataforma comum para ir a Seattle unidos. E a questão do audiovisual revelou-se um dos principais pontos de atrito. Um peixe-grande de vários fundos de investimentos americanos afirmou na terça-feira para o "Libération": "A exceção cultural é um combate de retaguarda. Por que vocês não deixam que o telespectador escolha o que quer ver?". Em contrapartida, a intervenção do sociólogo Pierre Bourdieu, 69, que abriu os debates (a portas fechadas), teria provocado "grande curiosidade", segundo testemunhas. Leia abaixo a íntegra das "observações" que o professor do Collège de France fez à prestigiosa platéia.
Não me darei ao ridículo de descrever a situação do mundo da mídia para pessoas que o conhecem melhor que eu; pessoas que estão entre as mais poderosas do mundo, de um poder que não é apenas do dinheiro, mas do que o dinheiro pode ter sobre os espíritos. Esse poder simbólico, que na maioria das sociedades era diferente do poder político ou econômico, hoje está concentrado nas mãos das mesmas pessoas, que detêm o controle dos grandes grupos de comunicação, ou seja, do conjunto dos instrumentos de produção e de difusão dos bens culturais.
A essas pessoas muito poderosas gostaria de submeter uma pergunta do gênero da que Sócrates submeteu aos poderosos de seu tempo (nesse diálogo, ele perguntou com muita paciência e insistência a um general célebre por sua coragem o que era coragem; em outro, perguntou a um homem conhecido por sua piedade o que era piedade; e assim por diante, fazendo parecer, a cada vez, que eles realmente não sabiam o que eram).
Não estando à altura de proceder dessa maneira, eu gostaria de fazer algumas perguntas que sem dúvida essas pessoas não se fazem (principalmente porque não têm tempo) e que conduzem todas a uma só: senhores do mundo, vocês têm domínio de seu domínio? Ou, mais simplesmente, sabem realmente o que fazem, o que estão fazendo, todas as consequências do que estão fazendo? Perguntas muito embaraçosas, às quais Platão respondeu com a famosa fórmula, que sem dúvida também se aplica a esse caso: "Ninguém é mau voluntariamente".
Dizem-nos que a convergência tecnológica e econômica do audiovisual, das telecomunicações e da informática, e a confusão de redes que dela resulta tornam inoperantes e inúteis as proteções jurídicas do audiovisual (por exemplo, as regras relativas às cotas de difusão de obras européias); dizem-nos que a profusão tecnológica, somada à multiplicação de canais temáticos digitalizados, responderá à demanda potencial dos consumidores mais diversos, que todas as demandas receberão ofertas adequadas, em suma, que todos os gostos serão satisfeitos.
Dizem-nos que a concorrência, sobretudo quando associada ao progresso tecnológico, é sinônimo de "criação" (eu poderia ilustrar cada uma de minhas asserções com dezenas de referências e citações, definitivamente muito redundantes). Mas também nos dizem que a concorrência dos novos agentes, muito mais poderosos, vindos das telecomunicações e da informática, é tamanha que o audiovisual tem cada vez mais dificuldade para resistir; que os valores dos direitos, principalmente em relação ao esporte, são cada vez mais elevados; que tudo o que produzem e divulgam os novos grupos de comunicação integrados tecnológica e economicamente, isto é, tanto mensagens televisivas quanto livros, filmes ou jogos televisivos, em suma, tudo o que se agrupa sob o nome de "catch all" de informação, deve ser tratado como uma mercadoria igual às outras, a que se devem aplicar as mesmas regras que a qualquer outro produto; e que esse produto industrial padronizado deve assim obedecer à lei comum, a lei do lucro, imune a qualquer exceção cultural sancionada pelas limitações regulamentares (como o preço único do livro ou as cotas de difusão).
Dizem-nos enfim que a lei do lucro, isto é, a lei do mercado, é eminentemente democrática, já que sanciona o triunfo do produto que é plebiscitado pelo maior número de pessoas. A cada uma dessas "idéias" poderíamos opor não idéias, sob o risco de parecermos um ideólogo perdido na névoa, mas fatos: à idéia de diferenciação e de diversificação extraordinária da oferta, poderíamos observar a extraordinária uniformização dos programas de televisão, o fato de que as inúmeras redes de comunicação tendem cada vez mais a difundir o mesmo tipo de produtos, jogos, seriados, música comercial, romances sentimentais do tipo telenovelas, séries policiais que nada ganham, ao contrário, em serem francesas ou alemãs, todos eles produtos originários da busca de lucros máximos por custos mínimos ou, em campo diferente, a crescente homogeneização dos jornais e dos semanários.
Em outro exemplo, às "idéias" de concorrência e diversificação, poderíamos opor o fato da extraordinária concentração dos grupos de comunicação, concentração que, como demonstra a mais recente fusão entre a Viacom e a CBS, ou seja, de um grupo voltado para a produção de conteúdo com um grupo voltado para a difusão, conduz a uma integração vertical tal que a difusão comanda a produção. Mas o essencial é que as preocupações comerciais, e em particular a busca do lucro máximo em curto prazo, se impõem cada vez mais, e cada vez mais amplamente, ao conjunto das produções culturais. Assim, no domínio da edição de livros, que estudei de perto, as estratégias dos editores, e em especial dos diretores de grandes grupos, se orientam para o sucesso comercial.É aí que seria necessário começar a fazer perguntas.
Falei há pouco de produções culturais. Ainda é possível hoje, e será ainda possível por muito tempo, falar de produções culturais e de cultura? Os que fazem o novo mundo da comunicação e são feitos por ele gostam de citar o problema da velocidade, do fluxo de informações e de transações que se torna cada vez mais rápido e, sem dúvida, eles têm parcialmente razão, quando pensam na circulação da informação e na rotatividade dos produtos. Dito isso, a lógica da velocidade e do lucro que se unem na busca do lucro máximo a curto prazo (com as pesquisas de audiência para a televisão, o sucesso de vendas para o livro e, evidentemente, o jornal, o número de anos para o filme) parecem-me incompatíveis com a idéia de cultura.
Como disse Gombrich, quando as "condições ecológicas da arte" são destruídas, a arte e a cultura não demoram a morrer.Como prova, eu poderia me contentar em citar o que ocorreu ao cinema italiano, que foi um dos melhores do mundo e que só sobrevive graças a um punhado de cineastas, ou do cinema alemão, ou do cinema da Europa do Leste. Ou a crise que sofre em toda parte o cinema de autor, principalmente por falta de circuitos de difusão. Sem falar na censura que os distribuidores de filmes podem impor a certos filmes. Ou ainda o destino de uma rede de rádio cultural, hoje entregue à liquidação em nome da modernidade, das pesquisas de audiência e das conivências da mídia.
Mas só podemos compreender realmente o que significa a redução da cultura ao estado de produto comercial se nos lembrarmos como foram constituídos os universos da produção e das obras que consideramos universais no campo das artes plásticas, da literatura ou do cinema. Todas as obras expostas nos museus, todos os trabalhos de literatura que se tornaram clássicos, todos os filmes conservados nas cinematecas são produtos de universos sociais que se constituíram aos poucos, superando as leis do mundo comum e particularmente a lógica do lucro.
Para me fazer entender, um exemplo: o pintor do Quatrocento- sabemos pela leitura dos contratos- teve de lutar contra os clientes para que sua obra deixasse de ser tratada como um simples produto, avaliada pela superfície pintada e pelo preço das tintas empregadas; teve de lutar para obter o direito à assinatura, ou seja, o direito a ser tratado como autor, e também pelo que chamamos, desde uma data bastante recente, de direitos autorais (Beethoven ainda lutou por esse direito); teve de lutar pela raridade, a originalidade, a qualidade, teve de lutar, com a colaboração de críticos, de biógrafos, de professores de história da arte etc., para se impor como artista, como "criador".
Ora, é tudo isso que se encontra ameaçado hoje com a redução da obra a um produto e a uma mercadoria. As lutas atuais dos cineastas pelo "final cut" e contra a pretensão do produtor de deter o direito final sobre a obra são o equivalente exato às lutas do pintor do Quatrocento. Foram precisos cerca de cinco séculos para que os pintores conquistassem o direito de escolher as tintas empregadas, a maneira de utilizá-las e, finalmente, o direito de escolher o tema, sobretudo ao fazê-lo desaparecer, com a arte abstrata, para grande escândalo do cliente burguês.
Da mesma forma, para ter um cinema de autor foi preciso todo um universo social, pequenas salas e cinematecas que projetam filmes clássicos e são frequentadas por estudantes, cineclubes animados por professores de filosofia, cinéfilos formados pela frequência a essas salas, críticos abalizados que escrevem nos "Cahiers du Cinéma", cineastas que aprenderam a profissão assistindo a filmes sobre os quais se informavam nesses "Cahiers", em suma, todo um ambiente social no qual certo cinema tem valor, é reconhecido.
São esses universos sociais que hoje estão ameaçados pela irrupção do cinema comercial e a dominação dos grandes distribuidores e, com eles, os produtores, salvo quando eles mesmos se encontram num processo de involução; eles são palco de um retrocesso, da obra para o produto, do autor para o engenheiro ou o técnico que utiliza recursos técnicos, os efeitos especiais, e de estrelas, todos extremamente dispendiosos, para manipular ou satisfazer as pulsões básicas do espectador (com frequência previstas pelas pesquisas de outros técnicos, os especialistas em marketing).
Reintroduzir o reino do "comercial" em universos que foram construídos, aos poucos, contra ele, é pôr em risco as obras mais elevadas da humanidade, a arte, a literatura e mesmo a ciência. Não acredito que alguém o possa realmente desejar. Foi por isso que citei no início a célebre fórmula platônica: "Ninguém é mau voluntariamente". Se é verdade que as forças da tecnologia aliadas às forças da economia, a lei do lucro e da concorrência, ameaçam a cultura, que podemos fazer para rechaçar esse movimento? Que podemos fazer para aumentar as probabilidades dos que só podem existir num tempo longo, os que, como outrora os pintores impressionistas, trabalham para um mercado póstumo?
Eu gostaria de convencer, mas sem dúvida precisaria de muito tempo, de que buscar o lucro máximo imediato não é necessariamente, quando se trata de livros, de filmes ou de pintores, obedecer à lógica do interesse verificado: identificar a busca do lucro máximo com a busca do público máximo é arriscar-se a perder o público atual sem conquistar outro, a perder o público relativamente restrito das pessoas que lêem muito, frequentam muito os museus, teatros e cinemas, ganhando em troca novos leitores ou espectadores ocasionais.
Se sabemos que, pelo menos em todos os países desenvolvidos, o período de escolarização não pára de crescer, assim como o nível de instrução médio, como também crescem todas as práticas estreitamente relacionadas ao nível de instrução (frequência a museus ou teatros etc.), podemos pensar que uma política de investimento econômico nos produtores e produtos ditos "de qualidade" pode, pelo menos em médio prazo, ser rentável, mesmo economicamente (de qualquer forma, sob a condição de contar com os serviços de um sistema educacional eficaz).
Assim, a opção não é entre a "globalização", isto é, a submissão às leis do comércio, portanto ao reino do "comercial", que é sempre o oposto do que se entende de modo mais ou menos universal por cultura, e a defesa das culturas nacionais ou essa ou aquela forma de nacionalismo ou localismo cultural. Os produtos kitsch da "globalização" comercial, a dos jeans, da Coca-Cola ou do seriado, ou a do filme comercial de grande orçamento e efeitos especiais, ou ainda a da "world fiction", cujos autores podem ser italianos ou ingleses, se opõem em todos os aspectos aos produtos da internacional literária, artística e cinematográfica, cujo centro está em toda parte e em lugar nenhum, embora tenha sido por muito tempo e talvez ainda seja Paris, lugar de uma tradição nacional de internacionalismo artístico, ao mesmo tempo que Londres e Nova York.
Assim como Joyce, Faulkner, Kafka, Beckett ou Gombrowicz, puros produtos da Irlanda, dos Estados Unidos, da Tcheco-Eslováquia ou da Polônia, foram feitos em Paris, também numerosos cineastas contemporâneos não existiriam como existem sem essa internacional literária, artística e cinematográfica cuja sede social é Paris. São necessários vários séculos para produzir produtores que produzem para mercados póstumos. É colocar mal os problemas simplesmente opondo, como se faz com frequência, uma "globalização" e um mundialismo que estariam do lado da potência econômica e comercial, e também do progresso e da modernidade, a um nacionalismo ligado a formas arcaicas de manutenção da soberania. Trata-se na verdade da luta entre uma potência comercial que pretende estender ao universo os interesses particulares do comércio e dos que o dominam e uma resistência cultural, fundada na defesa das obras universais produzidas pela internacional desnacionalizada dos criadores.
Vou encerrar com uma anedota histórica, que também se relaciona à velocidade, e que mostra quais deveriam ser, na minha opinião, as relações que uma arte livre das pressões do comércio poderia ter com os poderes temporais. Conta-se que Michelangelo aplicava tão pouco a forma protocolar em suas relações com o papa Júlio 2º, seu cliente, que este era obrigado a sentar-se rapidamente para que Michelangelo não se sentasse antes. Em certo sentido, poder-se-ia dizer que tentei perpetuar aqui, muito modestamente, mas muito fielmente, a tradição inaugurada por Michelangelo, de distância em relação aos poderes e, muito especialmente, desses novos poderes que são as potências conjugadas do dinheiro e da mídia.
Pierre Bourdieu é sociólogo, professor do Collège de France, autor de "Sobre a Televisão", "Contrafogos" (Jorge Zahar Editor) e "A Dominação Masculina" (Bertrand Brasil), entre outros.Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
PIERRE BOURDIEU
17/OUTUBRO/1999 – BOURDIEU DESAFIA A MÍDIA INTERNACIONAL O sociólogo francês defende a exceção cultural e os valores da arte em palestra a empresários, em Paris. ( do "Libération" )
Eles foram recebidos por Jacques Chirac e Lionel Jospin, adulados pelos ministros, convidados para banquetes nos palácios da República. Cerca de 70 grandes empresários do setor audiovisual que estiveram em Paris, na última semana, a convite de Pierre Lescure (Canal Plus) não esquecerão a viagem.
Oficialmente tratava-se da reunião anual do Conselho Internacional do Museu da Televisão e do Rádio (sediado em Nova York), uma espécie de clube informal das grandes empresas de mídia. Entre os presentes, Peter Chernin (presidente da Fox), Conrad Black (Hollinger), Thomas Middelhoff (Bertelsmann), Greg Dyke (BBC), Fedele Confalonieri (Mediaset), Rémy Sautter (CLT-UFA), Tim Koogle (Yahoo) etc., mais alguns eminentes representantes dos fundos de investimentos americanos e do mundo político: Jacques Delors, Henry Kissinger, Viviane Reding (comissária européia para a cultura).
Oficiosamente, os senhores da imagem viram-se "vítimas" de uma espetacular operação de encantamento, com o objetivo de sensibilizá-los para a idéia muito francesa da "exceção cultural". É que o tempo urge. No próximo mês começa em Seattle uma nova rodada de negociações comerciais patrocinada pela Organização Mundial do Comércio (OMC). A França quer "absolutamente" que a comunicação audiovisual seja excluída do campo de debates: o espectro do Acordo Multilateral sobre Investimentos (AMI) ainda ronda.
"Reivindicamos apenas o direito de manter nossa produção", pediu na última terça-feira Lionel Jospin, "pois trata-se de um fator essencial para nós: a diversidade cultural. Nada seria mais perigoso que um universo em que globalização rimasse com uniformização".
Na segunda-feira, em Luxemburgo, os Quinze não chegaram a acordo sobre uma plataforma comum para ir a Seattle unidos. E a questão do audiovisual revelou-se um dos principais pontos de atrito. Um peixe-grande de vários fundos de investimentos americanos afirmou na terça-feira para o "Libération": "A exceção cultural é um combate de retaguarda. Por que vocês não deixam que o telespectador escolha o que quer ver?". Em contrapartida, a intervenção do sociólogo Pierre Bourdieu, 69, que abriu os debates (a portas fechadas), teria provocado "grande curiosidade", segundo testemunhas. Leia abaixo a íntegra das "observações" que o professor do Collège de France fez à prestigiosa platéia.
Não me darei ao ridículo de descrever a situação do mundo da mídia para pessoas que o conhecem melhor que eu; pessoas que estão entre as mais poderosas do mundo, de um poder que não é apenas do dinheiro, mas do que o dinheiro pode ter sobre os espíritos. Esse poder simbólico, que na maioria das sociedades era diferente do poder político ou econômico, hoje está concentrado nas mãos das mesmas pessoas, que detêm o controle dos grandes grupos de comunicação, ou seja, do conjunto dos instrumentos de produção e de difusão dos bens culturais.
A essas pessoas muito poderosas gostaria de submeter uma pergunta do gênero da que Sócrates submeteu aos poderosos de seu tempo (nesse diálogo, ele perguntou com muita paciência e insistência a um general célebre por sua coragem o que era coragem; em outro, perguntou a um homem conhecido por sua piedade o que era piedade; e assim por diante, fazendo parecer, a cada vez, que eles realmente não sabiam o que eram).
Não estando à altura de proceder dessa maneira, eu gostaria de fazer algumas perguntas que sem dúvida essas pessoas não se fazem (principalmente porque não têm tempo) e que conduzem todas a uma só: senhores do mundo, vocês têm domínio de seu domínio? Ou, mais simplesmente, sabem realmente o que fazem, o que estão fazendo, todas as consequências do que estão fazendo? Perguntas muito embaraçosas, às quais Platão respondeu com a famosa fórmula, que sem dúvida também se aplica a esse caso: "Ninguém é mau voluntariamente".
Dizem-nos que a convergência tecnológica e econômica do audiovisual, das telecomunicações e da informática, e a confusão de redes que dela resulta tornam inoperantes e inúteis as proteções jurídicas do audiovisual (por exemplo, as regras relativas às cotas de difusão de obras européias); dizem-nos que a profusão tecnológica, somada à multiplicação de canais temáticos digitalizados, responderá à demanda potencial dos consumidores mais diversos, que todas as demandas receberão ofertas adequadas, em suma, que todos os gostos serão satisfeitos.
Dizem-nos que a concorrência, sobretudo quando associada ao progresso tecnológico, é sinônimo de "criação" (eu poderia ilustrar cada uma de minhas asserções com dezenas de referências e citações, definitivamente muito redundantes). Mas também nos dizem que a concorrência dos novos agentes, muito mais poderosos, vindos das telecomunicações e da informática, é tamanha que o audiovisual tem cada vez mais dificuldade para resistir; que os valores dos direitos, principalmente em relação ao esporte, são cada vez mais elevados; que tudo o que produzem e divulgam os novos grupos de comunicação integrados tecnológica e economicamente, isto é, tanto mensagens televisivas quanto livros, filmes ou jogos televisivos, em suma, tudo o que se agrupa sob o nome de "catch all" de informação, deve ser tratado como uma mercadoria igual às outras, a que se devem aplicar as mesmas regras que a qualquer outro produto; e que esse produto industrial padronizado deve assim obedecer à lei comum, a lei do lucro, imune a qualquer exceção cultural sancionada pelas limitações regulamentares (como o preço único do livro ou as cotas de difusão).
Dizem-nos enfim que a lei do lucro, isto é, a lei do mercado, é eminentemente democrática, já que sanciona o triunfo do produto que é plebiscitado pelo maior número de pessoas. A cada uma dessas "idéias" poderíamos opor não idéias, sob o risco de parecermos um ideólogo perdido na névoa, mas fatos: à idéia de diferenciação e de diversificação extraordinária da oferta, poderíamos observar a extraordinária uniformização dos programas de televisão, o fato de que as inúmeras redes de comunicação tendem cada vez mais a difundir o mesmo tipo de produtos, jogos, seriados, música comercial, romances sentimentais do tipo telenovelas, séries policiais que nada ganham, ao contrário, em serem francesas ou alemãs, todos eles produtos originários da busca de lucros máximos por custos mínimos ou, em campo diferente, a crescente homogeneização dos jornais e dos semanários.
Em outro exemplo, às "idéias" de concorrência e diversificação, poderíamos opor o fato da extraordinária concentração dos grupos de comunicação, concentração que, como demonstra a mais recente fusão entre a Viacom e a CBS, ou seja, de um grupo voltado para a produção de conteúdo com um grupo voltado para a difusão, conduz a uma integração vertical tal que a difusão comanda a produção. Mas o essencial é que as preocupações comerciais, e em particular a busca do lucro máximo em curto prazo, se impõem cada vez mais, e cada vez mais amplamente, ao conjunto das produções culturais. Assim, no domínio da edição de livros, que estudei de perto, as estratégias dos editores, e em especial dos diretores de grandes grupos, se orientam para o sucesso comercial.É aí que seria necessário começar a fazer perguntas.
Falei há pouco de produções culturais. Ainda é possível hoje, e será ainda possível por muito tempo, falar de produções culturais e de cultura? Os que fazem o novo mundo da comunicação e são feitos por ele gostam de citar o problema da velocidade, do fluxo de informações e de transações que se torna cada vez mais rápido e, sem dúvida, eles têm parcialmente razão, quando pensam na circulação da informação e na rotatividade dos produtos. Dito isso, a lógica da velocidade e do lucro que se unem na busca do lucro máximo a curto prazo (com as pesquisas de audiência para a televisão, o sucesso de vendas para o livro e, evidentemente, o jornal, o número de anos para o filme) parecem-me incompatíveis com a idéia de cultura.
Como disse Gombrich, quando as "condições ecológicas da arte" são destruídas, a arte e a cultura não demoram a morrer.Como prova, eu poderia me contentar em citar o que ocorreu ao cinema italiano, que foi um dos melhores do mundo e que só sobrevive graças a um punhado de cineastas, ou do cinema alemão, ou do cinema da Europa do Leste. Ou a crise que sofre em toda parte o cinema de autor, principalmente por falta de circuitos de difusão. Sem falar na censura que os distribuidores de filmes podem impor a certos filmes. Ou ainda o destino de uma rede de rádio cultural, hoje entregue à liquidação em nome da modernidade, das pesquisas de audiência e das conivências da mídia.
Mas só podemos compreender realmente o que significa a redução da cultura ao estado de produto comercial se nos lembrarmos como foram constituídos os universos da produção e das obras que consideramos universais no campo das artes plásticas, da literatura ou do cinema. Todas as obras expostas nos museus, todos os trabalhos de literatura que se tornaram clássicos, todos os filmes conservados nas cinematecas são produtos de universos sociais que se constituíram aos poucos, superando as leis do mundo comum e particularmente a lógica do lucro.
Para me fazer entender, um exemplo: o pintor do Quatrocento- sabemos pela leitura dos contratos- teve de lutar contra os clientes para que sua obra deixasse de ser tratada como um simples produto, avaliada pela superfície pintada e pelo preço das tintas empregadas; teve de lutar para obter o direito à assinatura, ou seja, o direito a ser tratado como autor, e também pelo que chamamos, desde uma data bastante recente, de direitos autorais (Beethoven ainda lutou por esse direito); teve de lutar pela raridade, a originalidade, a qualidade, teve de lutar, com a colaboração de críticos, de biógrafos, de professores de história da arte etc., para se impor como artista, como "criador".
Ora, é tudo isso que se encontra ameaçado hoje com a redução da obra a um produto e a uma mercadoria. As lutas atuais dos cineastas pelo "final cut" e contra a pretensão do produtor de deter o direito final sobre a obra são o equivalente exato às lutas do pintor do Quatrocento. Foram precisos cerca de cinco séculos para que os pintores conquistassem o direito de escolher as tintas empregadas, a maneira de utilizá-las e, finalmente, o direito de escolher o tema, sobretudo ao fazê-lo desaparecer, com a arte abstrata, para grande escândalo do cliente burguês.
Da mesma forma, para ter um cinema de autor foi preciso todo um universo social, pequenas salas e cinematecas que projetam filmes clássicos e são frequentadas por estudantes, cineclubes animados por professores de filosofia, cinéfilos formados pela frequência a essas salas, críticos abalizados que escrevem nos "Cahiers du Cinéma", cineastas que aprenderam a profissão assistindo a filmes sobre os quais se informavam nesses "Cahiers", em suma, todo um ambiente social no qual certo cinema tem valor, é reconhecido.
São esses universos sociais que hoje estão ameaçados pela irrupção do cinema comercial e a dominação dos grandes distribuidores e, com eles, os produtores, salvo quando eles mesmos se encontram num processo de involução; eles são palco de um retrocesso, da obra para o produto, do autor para o engenheiro ou o técnico que utiliza recursos técnicos, os efeitos especiais, e de estrelas, todos extremamente dispendiosos, para manipular ou satisfazer as pulsões básicas do espectador (com frequência previstas pelas pesquisas de outros técnicos, os especialistas em marketing).
Reintroduzir o reino do "comercial" em universos que foram construídos, aos poucos, contra ele, é pôr em risco as obras mais elevadas da humanidade, a arte, a literatura e mesmo a ciência. Não acredito que alguém o possa realmente desejar. Foi por isso que citei no início a célebre fórmula platônica: "Ninguém é mau voluntariamente". Se é verdade que as forças da tecnologia aliadas às forças da economia, a lei do lucro e da concorrência, ameaçam a cultura, que podemos fazer para rechaçar esse movimento? Que podemos fazer para aumentar as probabilidades dos que só podem existir num tempo longo, os que, como outrora os pintores impressionistas, trabalham para um mercado póstumo?
Eu gostaria de convencer, mas sem dúvida precisaria de muito tempo, de que buscar o lucro máximo imediato não é necessariamente, quando se trata de livros, de filmes ou de pintores, obedecer à lógica do interesse verificado: identificar a busca do lucro máximo com a busca do público máximo é arriscar-se a perder o público atual sem conquistar outro, a perder o público relativamente restrito das pessoas que lêem muito, frequentam muito os museus, teatros e cinemas, ganhando em troca novos leitores ou espectadores ocasionais.
Se sabemos que, pelo menos em todos os países desenvolvidos, o período de escolarização não pára de crescer, assim como o nível de instrução médio, como também crescem todas as práticas estreitamente relacionadas ao nível de instrução (frequência a museus ou teatros etc.), podemos pensar que uma política de investimento econômico nos produtores e produtos ditos "de qualidade" pode, pelo menos em médio prazo, ser rentável, mesmo economicamente (de qualquer forma, sob a condição de contar com os serviços de um sistema educacional eficaz).
Assim, a opção não é entre a "globalização", isto é, a submissão às leis do comércio, portanto ao reino do "comercial", que é sempre o oposto do que se entende de modo mais ou menos universal por cultura, e a defesa das culturas nacionais ou essa ou aquela forma de nacionalismo ou localismo cultural. Os produtos kitsch da "globalização" comercial, a dos jeans, da Coca-Cola ou do seriado, ou a do filme comercial de grande orçamento e efeitos especiais, ou ainda a da "world fiction", cujos autores podem ser italianos ou ingleses, se opõem em todos os aspectos aos produtos da internacional literária, artística e cinematográfica, cujo centro está em toda parte e em lugar nenhum, embora tenha sido por muito tempo e talvez ainda seja Paris, lugar de uma tradição nacional de internacionalismo artístico, ao mesmo tempo que Londres e Nova York.
Assim como Joyce, Faulkner, Kafka, Beckett ou Gombrowicz, puros produtos da Irlanda, dos Estados Unidos, da Tcheco-Eslováquia ou da Polônia, foram feitos em Paris, também numerosos cineastas contemporâneos não existiriam como existem sem essa internacional literária, artística e cinematográfica cuja sede social é Paris. São necessários vários séculos para produzir produtores que produzem para mercados póstumos. É colocar mal os problemas simplesmente opondo, como se faz com frequência, uma "globalização" e um mundialismo que estariam do lado da potência econômica e comercial, e também do progresso e da modernidade, a um nacionalismo ligado a formas arcaicas de manutenção da soberania. Trata-se na verdade da luta entre uma potência comercial que pretende estender ao universo os interesses particulares do comércio e dos que o dominam e uma resistência cultural, fundada na defesa das obras universais produzidas pela internacional desnacionalizada dos criadores.
Vou encerrar com uma anedota histórica, que também se relaciona à velocidade, e que mostra quais deveriam ser, na minha opinião, as relações que uma arte livre das pressões do comércio poderia ter com os poderes temporais. Conta-se que Michelangelo aplicava tão pouco a forma protocolar em suas relações com o papa Júlio 2º, seu cliente, que este era obrigado a sentar-se rapidamente para que Michelangelo não se sentasse antes. Em certo sentido, poder-se-ia dizer que tentei perpetuar aqui, muito modestamente, mas muito fielmente, a tradição inaugurada por Michelangelo, de distância em relação aos poderes e, muito especialmente, desses novos poderes que são as potências conjugadas do dinheiro e da mídia.
Pierre Bourdieu é sociólogo, professor do Collège de France, autor de "Sobre a Televisão", "Contrafogos" (Jorge Zahar Editor) e "A Dominação Masculina" (Bertrand Brasil), entre outros.Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.