sábado, novembro 23, 2002

Autor: ARIANO SUASSUNA
Editoria: ILUSTRADA Página: E8
Edição: Nacional Dec 25, 2000
Seção: ARIANO SUASSUNA


João Guimarães Rosa e o Barroco
ALMANAQUE ARMORIAL
Grande Logogrifo Brasileiro da Arte, do Real e da Beleza, contendo
idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de
casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso
e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia
e Licenciado em Artes Ariano Suassuna

ROSA, CERVANTES E EUCLYDES DA CUNHA
É DENTRO da linha de pensamento aqui mostrada nos últimos números deste Almanaque que aproximo João Guimarães Rosa de Euclydes da Cunha. É daí que vêm suas semelhanças, seus parentescos profundos, assim como as diferenças que marcam cada um deles dentro da mesma linhagem brasileira e barroca. O grande livro que é "Os Sertões" aproxima-se muito mais da Novela épica ou do estilo afortalezado e castanho das Capelas do barroco sertanejo da "Civilização do Couro". Já o "Grande Sertão: Veredas", descendente da "Demanda do Santo Graal" ou de "A Donzela Que Foi à Guerra", como que veio completar o "Ciclo do Ouro" das Minas Gerais, entrando numa comunhão harmoniosa com as Igrejas ou com a Música mineira do século 18. Fato semelhante ocorre com "Casa-Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, ou com o "Ciclo da Cana", de José Lins do Rego, que integram a "Civilização do Açúcar" da Zona-da-Mata nordestina.
A meu ver, o Sertão mineiro é mais parecido com a nossa Zona-da-Mata do que com o verdadeiro Sertão do Nordeste. Pelo menos é o que me sugere a paisagem do "Grande Sertão: Veredas", cheia de árvores, rios e bosques verdes. "O Liso do Sussuarão" é apenas um episódio, isolado dentro de todo aquele verdume, de todas aquelas águas.
Já o Sertão nordestino formado por lugares como o Cariri, a Espinhara, o Pajeú e o Moxotó é um semi-árido pedregoso, povoado de cabras, jumentos, carneiros, répteis e lagartos, carcarás e gaviões. Um grande Planalto amarelo e castanho, com uma ou outra Serra, muita poeira e muito Sol.
Por isso, as Matas fêmeas do "Grande Sertão: Veredas" são aparentadas com os bosques esverdeados da versão portuguesa da "Demanda do Santo Graal"; e o Mato macho do Sertão nordestino, com as paisagens secas e pedregosas que Euclydes da Cunha recriou em sua Novela-épica, é mais parecido com as estradas, e planícies, e planaltos, empoeirados e cheios de cabreiros, do "Dom Quixote", de Cervantes.
Como escritor, um dos meus defeitos maiores é o tom demasiadamente pessoal e as alusões que faço de vez em quando a um universo que só para mim tem validade. Mas uma de tais alusões é, agora, tão importante e esclarecedora para o que tenho a dizer que não posso me furtar a ela. É que Enrique Martinez López, professor de Literatura espanhola na Universidade da Califórnia, escreveu certa vez um "Guia para Leitores Hispânicos do Auto da Compadecida", do qual extraio as seguintes palavras:
"O que realmente interessa sublinhar para uma correta introdução à obra de Ariano Suassuna é o fato especial de que ele é um homem do Sertão (...), dessa zona desértica, triângulo de fogo solar e fome que se estende pelo interior dos Estados situados no Nordeste (...).
"No Sertão, o que salta aos olhos é sua virilidade. Desde a erma paisagem que, semelhante à Castela de Ortega y Gasset, é larga e plana como o peito de um varão até as mulheres que são mulheres, mas com impulsos de homem, como as que encontramos na obra de Suassuna. E o homem daquela terra, o sertanejo, é sobretudo um homem familiarizado com a ruína. As espantosas secas que periodicamente afligem a região levam tudo em poucas semanas. A certa altura do ano, o sertanejo nota que o suor de sua fronte se evapora depressa demais, que os dias abrasam, que as noites se tornam cada vez mais frias, que o gibão de couro dos vaqueiros se endurece como couraça de bronze (...).
"É preciso emigrar depressa. O céu torna-se um forno e a terra arde sob um sol incontrolável e desapiedado que lhe abre gretas pavorosas e calcina todo ser vivo. O sertão, que é terra sem caminhos, enche-se de brancas veredas de ossamentas (...).
"O sertanejo, pois, tem de fazer, para si, da vida, uma composição de lugar fatalmente ascética. Assim, tem sobriedade no comer, no morrer. O gesto recolhido para dentro, como a palavra, e também a punhalada, geralmente pouco explícita. É terra brava, que nos faz pensar, insistimos, numa Castela ideal, por muitas coisas além da paisagem. Por sua fome, que mantém ágeis e combativos os corpos e aguça o engenho em picardias sutis. Por seu sonho de água e mar, cujo frescor e riqueza saem a procurar os homens num êxodo eterno. Pelo ardente misticismo que às vezes incende de milagres aquelas soledades imensas, onde imperou a alucinação sangrenta de Antônio Conselheiro ou a bondade carismática do Padre Cícero, padrinho do sertão (...).
"Mas também por suas sangrentas defesas da honra e da palavra empenhada. E sobretudo pela viva tradição jogralesca que percorre suas cidades poeirentas. Façanhas de bandidos, duelos famosos, milagres e crimes, burlas e requestas, coisas de hoje e muito mais de ontem, tudo isso se canta nas feiras do sertão. Jograis modernos, alguns com irreverentes microfones, mas de voz milenária, vão recitando suas coplas, xácaras e romances de cordel ante auditórios ingênuos que entretanto estão mais familiarizados com a história dos Doze Pares de França, da amiga de Bernal Francês ou da Donzela Teodora do que com um filme qualquer".
A citação é longa, mas, como eu disse, indispensável: porque é um espanhol quem subscreve a semelhança que, desde 1947, afirmei notar entre a Espanha e o Sertão. E porque, não sendo nem crítico nem sociólogo, não sei a que atribuir tal semelhança, que existe, apesar de sermos descendentes de Portugueses, e não de Espanhóis.

segunda-feira, novembro 18, 2002

Esta manhã Teodoro W. Adorno fez uma coisa de gato: no meio de um apaixonado discurso, metade jeremiada e metade arrasto agarradíssimo às minhas calças, ficou imóvel e rígido, olhando fixamente um ponto do ar em que para mim não havia nada para ver até a parede onde está dependurada a gaiola do bispo de Evreux, que jamais despertou o interesse de Teodoro. Qualquer senhora inglesa teria dito que o gato estava olhando um fantasma matinal, dos mais autênticos e verificáveis, e que a passagem da rigidez inicial a um lento movimento da cabeça da esquerda para a direita, terminando na linha de visão da porta, demonstrava de sobra que o fantasma acabava de ir embora, provavelmente incomodado por esse detector implacável.
- Do Sentimento do Fantástico
Julio Cortazar